1 – O todo-o-terreno
Mário Soares (1924-2017), falecido este sábado aos 92 anos, continuava a ser uma força da Natureza. A sua bonomia conferiu-lhe a alcunha com que os portugueses sempre o recordarão: o «Bochechas». Mas a sua ousadia dá-lhe o outro lado e o outro apelido: o «Velho Leão». Ele só podia ser amado ou odiado. Durante dez anos em Belém, foi o mais consensual dos portugueses vivos. O paradoxo desponta: autoritário, mimado e prepotente, no plano pessoal e político, arriscou a própria vida por valores humanistas, pelo pluralismo e pelo primado da tolerância. Confiável mas instável, simpático mas irascível, foi sucessivamente comunista, socialista radical, anti social democrata – «Sou profundamente contra um regime social-democrata do tipo sueco», disse, após o 25 de abril… – marxista, anticomunista, social-democrata do tipo europeu, pró-americano e antiamericano, defensor do bloco central e de alianças à esquerda, ideológico mas pragmático, teórico no discurso, prático na ação, ignorante mas literato, capaz de mudar de opinião «convictamente».
Vistos prospetivamente os últimos anos da sua vida, é difícil acreditar que dele tenha escrito Ronald Reagan, no seu diário, numa entrada de 16 de fevereiro de 1983: «Passou por cá Soares, de Portugal (será provavelmente primeiro-ministro após as eleições). É um socialista, mas completamente anticomunista e pró América».
2 – O aprendiz
Mário Alberto Nobre Lopes Soares iniciou a sua vida cheia e inteira de árdua luta política, quase no berço, na Rua Gomes Freire, em Lisboa, quando ouve as heróicas histórias dos velhos republicanos, amizades do seu pai, João Soares. Passando por sucessivas dificuldades, o Colégio Moderno, no Campo Grande, negócio e ganha pão da família, sobreviveria graças ao matriarcado iniciado por Elisa Nobre Baptista (1888-1955), mãe de Soares, e continuado por Maria Barroso, sua futura mulher. Ainda hoje, a tradição se mantém, com a filha, Isabel, aos comandos da, finalmente, rentável instituição.
Só aos 11 anos Mário soares é informado de que o seu pai fora padre. Nessa altura, com o pai ausente por razões políticas, já Mário é um agnóstico, por influência da mãe. Os seus dois meios-irmãos são firmemente anti-clericais e a figura mais admirada por ali é o mata frades republicano Afonso Costa. O pai, entretanto, desdobra-se na fundação de colégios que abrem e fecham, antes da constituição do Moderno. O derrube do salazarismo parece ser, porém, o centro principal de toda a sua atividade. A conspiração de velhos republicanos passa por sua casa, tornando-se ainda mais interessante quando rebenta a guerra civil de Espanha, em 1936, tem Mário Soares 12 anos.
O seu tirocínio político reforça-se na adolescência. O que ele quer é discutir política, conspirar, derrubar o salazarismo, como o pai. Vê-lo-ão, já comunista, à frente das manifestações que comemoram a vitória dos aliados, em 1945 e no MUD Juvenil, movimento de oposição pelo qual sofrerá a sua primeira prova de fogo às mãos da polícia política, a PIDE. O seu intelecto desenvolve-se com as lições de Cultura Geral do filósofo Agostinho da Silva, contratado por João Soares para «abrir a cabeça» ao miúdo. Com sucesso.
Paralelamente, a sua formação política dava um salto e, em 1942, com apenas 18 anos, adere ao PCP, após umas férias com outros jovens comunistas, na Foz do Arelho. Um dos seus antigos professores, no Colégio Moderno, chamava-se Álvaro Cunhal.
3 – O resistente
A sua carreira política iniciou-se nas lutas do reviralho republicano contra Salazar, nas tertúlias de amigos do pai, João Lopes Soares (1878-1970), ex-padre, pedagogo e ex-ministro da I República. Em 1943, estava no MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista) e, em 1946, fundador do MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática). Em 1949, foi secretário da Comissão Central da candidatura de Norton de Matos, onde já representava, embora clandestinamente, o PCP, de que era militante recente. A perseguição de Salazar levou-o 12 vezes á prisão e teve o seu epílogo, em 1968, no degredo em São Tomé.
Casou na prisão, com a atriz Maria Barroso, a 22 de fevereiro de 1949 e licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas (1951) e em Direito (1957) pela Universidade de Lisboa. A projeção interna e internacional de Mário Soares inicia-se quando o instinto o leva a tornar-se advogado de família de Humberto Delgado. Essa notoriedade leva-o a um périplo internacional em 1970, já líder da ASP (Associação Socialista Portuguesa, fundada em 1964 e precursora do PS.
A grande viagem começou pelo Brasil e passou, sucessivamente, pela Venezuela, Porto Rico e México, antes de terminar nos EUA. Em Nova Iorque, no Overseas Press Club, dá uma conferência de imprensa, onde começa por desmentir o rótulo de liberal dado a Marcelo Caetano. A denúncia prosseguia: «Qualquer pessoa pode ser deportada por decisão do governo por tempo indeterminado e sem julgamento prévio». Pedagógico, Soares continuava as suas revelações feitas perante uma audiência tão desconhecedora quanto incrédula: «A Pide é um estado dentro do Estado». Ou: «A ANP não é senão o partido único de Salazar, razão pela qual a oposição nunca conseguiu eleger ninguém».
Mas é no dossiê «guerra colonial» que Soares bate onde dói mais ao governo de Caetano: «Portugal vive há anos uma guerra colonial sem saída e sem sentido. É uma guerra crua que um país atrasado e economicamente débil não deveria travar, sem poderosos auxílios exteriores. E também não seria possível que um país com uma opinião pública livre pudesse prosseguir durante nove anos uma guerra que a nação não compreende e onde os recursos humanos se vão lentamente exaurindo». E faz um apelo: «Os democratas portugueses confiam na força da opinião pública internacional e na solidariedade dos democratas para fazer acabar o apoio internacional de que tem beneficiado a ditadura portuguesa».
4 – O exilado
No mundo livre, a sua figura emerge como uma alternativa válida de poder, em Lisboa. A agência Reuters transmite de forma quase integral a conferência de imprensa, que obtém enorme destaque em jornais como o New York Times ou o Washington Post e a revista TIME. As televisões americanas transmitem, também, apontamentos do acontecimento. O exílio surge como única alternativa de escapar à prisão. O diretor da PIDE avisa-o: «Desta vez não seremos tão suaves como das outras…», depois de lhe dar quatro horas para sair do País.
5 – O regressado
Na madrugada de 25 de abril, de 1974, num hotel, em Bona, Maria Barroso atende um telefonema a anunciar a revolução em Portugal. Guiado pelo instinto político que sempre o salvou, Soares cancelou todo o programa alemão e rumou à sua base no exílio, Paris. Com o aeroporto de Lisboa fechado, resta-lhe, para regressar a Portugal, o Sud Express. Na sua cabeça, o primeiro exilado a aparecer ocuparia o espaço. Ou, pelo menos, um espaço precioso.
E foi assim que Soares e alguns amigos políticos e exilados em França se tornaram nos ilustres passageiros daquele que passou para a História como o «comboio da liberdade».
Quando desembarca em Santa Apolónia, é imediatamente conduzido à Cova da Moura para se avistar com o general António de Spínola. Inicia imediatamente a sua pugna pela entrega do poder aos partidos políticos, em eleições democráticas. Uma promessa do programa o MFA (Movimento das Forças Armadas, sigla escolhida pelo movimento dos capitães), mas que, nos dois anos seguintes, seria posta em causa, primeiro, por Spínola, depois por setores radicais do próprio MFA e, finalmente, pelo PCP e por partidos diversos da esquerda radical.
6 – O Fundador da democracia
Após o 25 de abril, Soares define as suas quatro fases: fase 1: marcação de eleições democráticas e pluralistas. Fase 2: entrega do poder aos partidos civis. Fase 3: acabar com a tutela militar, através da extinção do Conselho da Revolução e sua substituição por um Tribunal Constitucional. Fase 4: adesão à CEE.
Mais socialista ou mais liberal – foi acusado de «guardar o socialismo na gaveta» e foi também ele o primeiro a «entregar» o País ao FMI, em 1977 e em 1983 -, mais à direita ou mais à esquerda, Mário Soares nunca se desviou destes princípios, e concretizou-os, com aliados tácitos de momento (Frank Carlucci, embaixador americano em Lisboa, durante o PREC e elemento da CIA, ou Melo Antunes, capitão de abril e redator do Documento dos Nove, que denunciaria a deriva comunista da revolução) ou correligionários fiéis a tempo inteiro (Salgado Zenha, Manuel Alegre, Tito de Morais).
7 – O confronto
Logo à chegada de Cunhal a Lisboa, a 30 de abril de 1974, quando o secretário-geral do PCP subiu, sem Soares, para um blindado militar, reencenando uma célebre imagem de Lenine, na sua entrada em Moscovo, as águas começaram a separar-se. No 1.º de Maio de 1974, Cunhal foi o último a discursar, perante o desagrado de Soares, que se conformou com a explicação de que o (já) rival tinha a primazia por ser mais velho.
Um ano depois, no estádio 1.º de maio, Soares, à frente da delegação do PS, forçou a entrada na tribuna, não tendo conseguido ser admitido – apesar de ter ganho as eleições para a Assembleia Constituinte, uma semana antes. A confrontação prosseguiria por todo o verão seguinte até à clarificação de 25 de novembro, com a vitória das forças militares moderadas após a tentativa de um golpe dos militares radicais.
Álvaro Cunhal começaria a perder a guerra durante o famoso debate em que balbuciou um dúzia de vezes, perante os ataques de Mário Soares, o famoso «olhe que não, doutor, olhe que não…». Surpreendentemente, Mário Soares revelou o instinto matador que se esperava, antes, do comunista, e que apanhou este totalmente desprevenido.
8 – As grandes vitórias
Tinha a força eleitoral do seu lado. Afinal, foi o PS o mais votado nas eleições de 1975, as primeiras livres, para a Assembleia Constituinte. E voltou a ser o mais votado, em 1976, para a primeira Assembleia da República e governo democraticamente eleitos. Anos difíceis afastaram-no da popularidade, atravessou o deserto, mas conseguiu ser eleito (à 2.ª volta e com o apoio contrafeito do PCP) como Presidente da República.
Teve, no segundo mandato, a maior votação de sempre, numa eleição em Portugal e conseguiu atingir, nessa altura, o auge da sua carreira. Mesmo assim, como prova de que se mantinha vivo e polémico, usou os seus poderes para ajudar o PS a regressar ao governo, fazendo uma guerrilha institucional sem tréguas ao PSD e ao primeiro-ministro, Cavaco Silva.
Pela segunda vez no espaço de dez anos, Mário Soares encontrava um líder com força, capacidade e vontade para destruir a sua obra de uma vida, o PS, o maior partido português no primeiro conjunto de eleições livres (só derrotado, pela primeira vez, por uma coligação eleitoral, a AD, em 1979) e o mais bem implantado, a nível territorial em Portugal. Cavaco tinha conquistado, sozinho, para o PSD, duas maiorias absolutas, estabilizando a votação do PS na casa dos 20 e poucos por cento. Antes dele, o PRD de Ramalho Eanes tinha roubado metade do eleitorado aos socialistas. São coisas que «não se perdoam»…
Quando, em 1987, o PS votou uma moção de censura do PRD, para derrubar o governo minoritário de Cavaco Silva, Soares viu ali uma oportunidade para acabar com o partido eanista e convocou eleições antecipadas. De facto, nas eleições, o PRD foi praticamente pulverizado. O único «pormenor» não previsto por Soares foi o da conquista da maioria absoluta… Mas a sua imagem de Presidente de todos os portugueses saiu reforçada: afinal, ele recusara levar o «seu» PS para o Governo e interpretara bem a vontade popular de querer manter Cavaco no poder. Esta autoridade moral deu-lhe carta branca para enfrentar Cavaco, no futuro.
9 – A falsa reforma
Ao sair de Belém, em 1996, tem, agora, 71 anos, uma vida política cheia e atingiu o auge da sua carreira. Foi deputado, ministro, primeiro-ministro e Presidente da República unanimemente reconhecido pelo povo. É o político mais popular do País e o mais conhecido internacionalmente. Apertou a mão aos homens mais poderosos do Mundo do pós-Guerra, foi amigo pessoal de alguns deles, é dos poucos rostos portugueses conhecidos, depois de Eusébio, Amália ou Luís Figo, numa qualquer rua do estrangeiro por onde passeie. Viajou pelo planeta inteiro, teve centenas de amigos, gozou os prazeres da vida, teve mulheres, constituiu uma família e deixa um acervo monumental sobre o século XX português, que qualquer um pode consultar ou usar através da fundação Mário Soares, constituída com base nas verbas excedentes dos dois MASP. Nem mesmo o caso mais bicudo da sua carreira, o processo Emaudio/Fax de Macau beliscou o seu prestígio. O País inteiro aclama: «Soares é fixe!»
E o que fez Mário Soares? A adrenalina da política chamava-o. Corria-lhe nas veias. Em 1999, aceita o convite de António Guterres para encabeçar a lista do PS ao Parlamento Europeu. Cumpre o mandato.
Em 2003, encabeça manifestações contra a intervenção da coligação EUA-Reino Unido no Iraque e inicia um regresso às origens ideológicas. Torna-se anti-americano e aproxima-se do movimento de Porto Alegre.
Em 2004, na festa dos seus 80 anos, proferia um discurso notável que funcionou como a sua última grande intervenção para a posteridade. Nele adverte contra os políticos de safra medíocre, fazendo uma analogia com os vinhos de bons e maus anos.
Um ano depois, porém, a sua casa do Vau é um caldeirão conspirativo. Já prepara a recandidatura a Belém, para cumprir um 3.º mandato. Domina as operações, distribui tarefas, entusiasma-se. Sabe que, se for eleito, sairá de Belém com 86 anos.
A campanha, porém, demonstrará que este Mário Soares já não conhece os portugueses como conhecia. Pior do que isso, há uma geração de eleitores que já não se lembra dele. Acontece-lhe o impensável e perde o debate televisivo com Cavaco Silva. O PS está dividido, com Manuel Alegre a desafiar-lhe o protagonismo e os votos. Acaba em 3.º lugar. A sua estrela apagou-se.
10 – O fim
Mas Mário Soares é Mário Soares. A depressão não dura mais do que uma noite bem dormida. Fará, até ao último dia, política por outros meios. Prossegue, talvez menos lúcido, mas mordaz, interventivo e omnipresente. Escreve artigos, participa em programas de televisão, aparece em manifestações e acaba a vida num último e inglório combate contra a detenção de José Sócrates. Afinal, nunca teve medo de abraçar grandes causas, mesmo que algumas fossem causas perdidas. Morre aos 92 anos, três décadasd depois de, a 16 de fevereiro de 1986, ter assomado à varanda da sede do MASP (Movimento de Apoio de Soares à Presidência) e dizer, numa tirada que ficou para a História: «Serei o Presidente de todos os portugueses».
Nesta altura, Mário Soares era já uma das figuras portuguesas mais marcantes do século XX e, a par de Salazar, uma das que mais influenciaram a vida nacional.
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Excertos de um artigo biográfico publicado na revista VISÃO História, inteiramente dedicada a Mário Soares, esta semana nas bancas