Um escritor feliz, em busca de histórias do passado, obcecado com pormenores e com forte ligação à pintura. Eis como Orhan Pamuk, Prémio Nobel de Literatura em 2006, se apresentou na FIL de Guadalajara. Era o escritor em destaque na edição deste ano – todos os anos a organização convida um laureado pela Academia Sueca – e o autor de Istambul não deixou ninguém insatisfeito.
Num inglês sem sotaque (é professor na Universidade de Columbia, em Nova Iorque), abordou todos os assuntos, do processo criativo à atualidade política. Sem cedências, sempre disse frases que poderiam fazer capa em qualquer jornal. E valer-lhe a antipatia do regime turco. Como esta: “Antes de morrer, gostava de ver uma democracia plena no meu país”. E justificando o seu exílio, acrescentou: “Não é possível ser feliz no meu país. Não há democracia sem liberdade de expressão.”
Antes, no entanto, Pamuk já tinha esclarecido a audiência. “Há quem goste de ouvir dizer que a Literatura é uma arma, mas não é, pelo menos para mim que não sou político. Pode ser ocasionalmente, mas nunca por norma”, afirmou.
Os seus assuntos são sobretudo literários. Ou pictóricos, porque, na verdade, Orhan Pamuk quis ser, entre os 17 e 22 anos, pintor. Recentemente, voltou à pintura e encontra-se a preparar uma nova exposição, em Paris. Não foi um regresso planeado. Um dia, em Nova Iorque, cruzou-se com uma loja de material artístico. Sem ter sido uma decisão consciente, entrou e saiu de lá com dois sacos cheios de telas, tintas e pincéis.
Na pintura, como na escrita, é pessoa de se demorar em pormenores. “Adoro o processo, a textura, tal como, num romance, a investigação ou a leitura de jornais antigos”, adiantou. “Sou muito paciente.” Entre uma arte e outra, só encontra uma diferença: “Ao pintar, sinto-me como aquelas pessoas que cantam no banho, leve e feliz, o que não acontece na escrita. Mas quando leio o que escrevo sinto-me mais inteligente do que quando vejo o que pinto”. Não se pode ter tudo.
Em conversa com o escritor mexicano Jorge Volpi e com honras de salão principal, o Prémio Nobel de Literatura não se recusou a responder às perguntas que considerou mais “frequentes”. Influências literárias? Tolstói e Dostoiévki, em primeiro plano, numa trilogia completada por Thomas Mann. Ao focar o universo hispânico, destacou Octavio Paz, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Gabriel García Marquez e sobretudo Jorge Luis Borges, com quem aprendeu a valorizar os textos sufi da sua tradição cultural. Neles passou a ver um misticismo com o qual se identifica.
Com Nabokov aprendeu o poder das “acrobacias”. E, de Portugal, nomeou Fernando Pessoa e José Saramago, em particular a convivência de ambos em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para o universo literário árabe, confessou um desejo: “Que surja um boom como o que divulgou a Literatura da América Latina aos quatro cantos do mundo.”
Como em toda a Literatura, um dos seus temas recorrentes é o encontro amoroso. “Nunca coloquei o amor num pedestal”, esclarece. Nos romance, claro. “Gosto de o descrever como quem tem um acidente, como algo que pode acontecer a qualquer pessoa, mas que a certa altura ninguém consegue controlar.” Também o entusiasma escrever sobre o que testemunhou e que o tempo se encarregou de relegar para o campo da História. “Não é nostalgia, é tentar compreender”, disse. “O poder das grandes narrativas seduz-me, assim como o impacto que têm na nossa imaginação.”
E como nascem os seus romances? “Ah, essa é uma pergunta popular”, brinca. “Oriento um seminário em Columbia só sobre esse tema, é impossível resumir um semestre numa resposta.” Mas a ocasião é propícia, a plateia acompanha-o com entusiasmo, os seus livros são traduzidos regularmente no México, incluindo La Mujer del Pelo Rojo, lançado na FIL. “Basta ver o tamanho dos meus romances: não nascem de um dia para o outro”, ironiza. “Talvez hoje possa dizer que cada livro é como uma árvore, à qual vou acrescentando troncos, ramos e folhas, veios narrativos que se atraem mutuamente”. Há ainda a vontade de construir um “novo mundo com palavras” e de “criar personagens da mesma maneira que se constrói um muro ou uma ponte.”
Porque escreve, afinal? “Porque amo estar o dia inteiro fechado em casa a escrever; porque o cheiro do papel e da tinta é um vício; e porque acredito na imortalidade das bibliotecas”, sintetizou. É, então, um escritor realizado? “Sim, sou um escritor feliz”. E o que é a felicidade? “Uma vida com sentido. Tudo o que aconteceu comigo foi porque escrevi. A minha única religião é a Literatura.”