Se a vida são dois dias e o Carnaval são três, é melhor ir direta ao assunto, já que no Carnaval “ninguém leva a mal”. Ao menos uma vez no ano, que uma pessoa não tenha de sentir-se como se estivesse permanentemente em palco, a representar um papel. O da pessoa exemplar, perfeita, profissionalmente reconhecida, mas que não passa disso mesmo: um papel que se representa, mas está longe de corresponder à verdade de quem se é, na essência.
Lembro-me de como ficava angustiada nos tempos do secundário e, mais tarde, na faculdade, quando tinham lugar os testes e as avaliações. Ou melhor, o período que se seguia a eles, marcado por comparações do tipo “Tens a certeza de que era essa a resposta certa? Eu não escrevi isso” ou “Isso é capaz de estar errado, mas pode ser que te considerem a fundamentação”. O mal-estar social pós exames acabava por revelar-se infundado: as notas eram boas e a sensação de ter sido um fracasso em toda a linha dissipava-se naturalmente. “Safei-me desta”, pensava.
O ingresso no mercado de trabalho não foi assim tão diferente dos tempos académicos. A sensação de estar sempre em exame afigurava-se esgotante e desagradável. Ter de fazer tudo para corresponder às expetativas. Não ficar mal na fotografia. Superar-me numa base diária. Chama-se a isto ansiedade de desempenho, que costuma ser frequente em pessoas com traços de personalidade perfeccionistas, mas também naquelas que padecem de um viés cognitivo que as leva a atribuir o resultado de algo bem sucedido a fatores externos (sorte, coincidência, boa vontade de terceiros, etc), sendo a falha – o erro, que tanto se teme e que chega a ser um tabu pessoal – algo que só pode ser fruto da responsabilidade própria.
Correções
Há quem chame a isto masoquismo, ou baixa autoestima. Porém, a obsessão em ser exemplar e agradar a todos – manter-se no modo “pleaser” como se diz agora – é algo ligeiramente diferente. Reconhecer que se fez algo bem ou receber elogios por isso parece revelar-se ainda mais catastrófico, desencadeando pensamentos negativos como “A seguir, só pode ser piorar, a fasquia torna-se demasiado alta”. Ou, mais grave ainda, aquela voz sabotadora que se transporta dentro lança o aviso: “Mal sabem eles quem tu realmente és “. Uma fraude. Uma pessoa que finge que é alguém, e que disfarça tão bem que chega a passar por competente, fantástica e merecedora de simpatias. Até ao dia…
Como se chega até aqui?
Desde o final dos anos setenta que duas piscólogas francesas cunharam o termo “Sindroma do Impostor” para definir o que mais tarde seria considerado, não um problema clínico, mas antes um estado neurótico que, no pior dos cenários fantasiados, conduzia ao evitamento de situações de exposição, não fosse o diabo (a voz interna sabotadora, qual fantasma nosso irmão) tecê-las e desmascarar, num abrir e fechar de olhos, a pessoa falsa que ali estava, o verdadeiro embuste, perito na arte do fingimento.
O (In)aceitável é…
Elogios, sucessos, mérito… tudo isso é difícil de aceitar, de admitir que se tem, na primeira pessoa. Os outros só o fazem por convenção social, conveniência ou mesmo ignorância. A incapacidade para aceitar-se não costuma acabar bem: mais dia, menos dia, a autoprofecia negativa realiza-se e manifesta-se em auto-exclusão, quando não mesmo em auto-sabotagem. Fica-se refém da desta espécie de falso self (“eu faz de conta”, em que a máscara não é só um dia por ano, mas ao longo do ano inteiro) e viver com ele não é (mesmo!) pera doce.
Elas, sempre elas…
Curiosamente, várias figuras públicas bem sucedidas confessaram que nem sempre conseguem descolar deste companheiro implacável – o “impostor” que parece habitar dentro delas. As atrizes Emma Watson e Natalie Portman, por exemplo. Por cá, não posso deixar de evocar o nome de Assunção Esteves, outra mulher que ocupou um cargo elevado e com visibilidade pública, e a afirmação que andou nas bocas do mundo, sobre o seu “medo do inconseguimento”.
Os estudos mais recentes sobre o fenómeno sugerem que ele é mais comum em mulheres bem sucedidas na carreira, mas que trabalham demais, parecem sempre insatisfeitas consigo mesmas e que tendem a ser os seus próprios carrascos. Psicanaliticamente falando, teriam um superego excessivo, castigador. De forma mais prosaica, é de admitir que tenham um nível de exigência excessivo, aprendido ou autoimposto na infância, como forma de controlar situações de instabilidade emocional. Porém, o que seria uma defesa adaptativa converte-se, ao longo dos anos, numa armadilha passível de conduzir a estados de mal-estar e de stresse crónico, chegando mesmo até à exaustão (burnout).
Que fazer com este “filme”?
Superar o medo da vergonha, tolerar o erro como parte de um processo de aprendizagem e perceber que o valor próprio não depende do que se conseguiu ou do que ficou por alcançar enquanto pessoa são algumas das formas de sair deste ciclo infernal auto imposto e, em certa medida, aprendido.
Parece fácil, mas só lá vai com persistência e treino. Porque foi igualmente preciso tempo para instalar a crença de que só sendo “o(a) melhor” a fazer alguma coisa é que se seria reconhecido enquanto pessoa válida e capaz. Ou porque a ideia de ter talento pareceu sempre depender mais do carisma pessoal do que da aprovação dos outros. Nesse caso, pode parecer mais sensato adiar, não avançar ou deixar a meio o que se iniciou com garra. Mais vale passar por alguém lento, ou preguiçoso ou distraido, do que sofrer a humilhação de, eventualmente, falhar, mesmo que seja só em abstrato, e ter de aguentar-se com esse mal-estar, essa “espécie de nível social frustracional” (parafraseando a ex presidente da AR).
Ah, fracasso, venha de lá um abraço
As piores tragédias são aquelas que se vivem no palco da mente e nunca chegaram a acontecer à luz do dia. As ficções catastróficas encenadas podem dar a ilusão de segurança – “mais vale pensar o pior e receber o melhor do que o contrário” – mas o preço a pagar por manter o controlo de conduta é tal que um dia há que fazer aquele frente-a-frente diante do espelho e falar “de homem para homem” (ou “de mulher para mulher”) com essa mítica figura – o(a) vigarista ou fraude que vai para todo o lado onde formos, sem descolar da nossa sombra.
Porque a vida é o que acontece enquanto você faz planos e conjeturas, nada melhor do que aproveitar esta semana para dar largas à sua rebeldia e desafiar a sua máscara. O melhor que pode acontecer é concluir que nem mesmo você consegue levá-la a sério. E porque a semana é de Carnaval – e a vida são só dois dias – saia à rua com a sua companheira de fingimento e divirtam-se, fundam-se até que não se consiga mais identificar o que é um e o que é outro, porque algures no meio de ambos estará a tão desejada virtude.