Conto-vos hoje uma história sobre amor, amor verdadeiro, amor intenso de homens que amam profundamente, incondicionalmente o desconhecido. Homens que emergem de todos os lados, todos os anos, há cinco séculos, e percorrem estradas, montes e vales, na contemplação da natureza, buscando nela, no recolhimento que permite, o reflexo do divino que creem também existir neles próprios. Contemplação e busca que não cansam, na quietude da ilha, mansamente deitada sobre o mar, exalando incenso, entrega graciosa, apelo à devoção.
As estradas enchem-se destes homens pela Quaresma. Enchem-se de homens que acreditam ou que, quando duvidam, querem crer que existe, atrás da bruma que tantas vezes lhes veda o olhar, uma força ininteligível, que acode quando é preciso, que supera tudo e todos, que está sempre lá. Um poder absoluto que tudo explica. E, se assim é ou assim pode ser, quem sabe, digo eu, por que não ir ao seu encontro, pelos caminhos conhecidos da terra que os sustém?
Eles são os romeiros da Quaresma, que se juntam em ranchos e vão de freguesia em freguesia, pequenos povoados que pontuam a lonjura dos campos e dos matos, dando a volta completa à ilha de São Miguel, ou a outras ilhas, embora com menos expressão, por serem os grupos e os espaços a percorrer bem menores, rezando sempre, repetindo as mesmas palavras, que aqui são prece, cada um com suas intenções, mas todos para que o mundo se mantenha nas calhas do Bem. Mal não faz, digo eu novamente, pelo menos aos próprios, que meditam num encontro profundo consigo, com a natureza e com o divino. E agradecem pela bondade da divindade, seja ela o que for, Deus, energia suprema, inteligência universal.
Caminham todos no mesmo sentido com o mar à esquerda, enfrentando a pé os cerca de duzentos e sessenta quilómetros que apenas a ilha maior guarda todos os anos para eles. A tradição manda que levem xaile aberto sobre os ombros e um lenço de lã sobre ele, uma saca com comida a que chamam de cevadeira, o terço na mão com contas infindas que os dedos percorrem, e o indispensável bordão com a ponta de metal onde se apoiam durante a longa caminhada … e rezam, rezam, rezam, e a oração é um canto que se mistura no ar denso de humidade e sobe, juntando-se ao trinado dos muitos pássaros que correm o céu, despreocupados no seu voo, ora rápido, ora parado, nas asas de muito vento que pelas ilhas faz nesta altura do ano, embora seja primavera.
Esta tradição, que vem de há muito, tem razão de existir, sobretudo para os devotos, porque é a resposta dos homens ao sismo que, às duas da manhã do dia 22 de outubro de 1522, destruiu a primeira capital da ilha de S. Miguel, Vila Franca do Campo, enquanto todo o povo dormia. Ao todo morreram neste incidente 3 a 5 mil pessoas. O descomunal terramoto foi a maior catástrofe natural de que há memória no arquipélago dos Açores, com os deslizamentos de terras ceifando vidas e arrastando bens, e a segunda maior do país, logo a seguir ao terramoto de 1755, que arrasou Lisboa. Este é o contexto que explica esta caminhada de fé. Os que nela participam, sempre homens, nunca mulheres, (sabe-se lá porquê, ou sabendo, teria sido melhor não saber) percebem por que caminham eles, ilhéus, há quinhentos anos em romaria.
E chegam as assaduras na pele e as bolhas nos pés. E vem o cansaço psicológico do afastamento da família e das privações do sono, das tempestades e até das bonanças – a ilha às vezes dá-nos quatro estações num dia – das pernoitas em casas de desconhecidos, do quadro que cada um pinta, feito da sua própria solidão, do som monocórdico dos passos como o tique-taque dos ponteiros do relógio, da mistura sempre a mesma de céu com mar, de mata com ribeira e grota, de ermidas e igrejas, onde sempre param, com contas infindáveis do rosário que não foge dos dedos secos. E há estrada, estrada, estrada e os muitos pensamentos misturados com imagens de lugares, imagens de outros que são seus irmãos de caminhada e ainda daqueles que veem pelo caminho, e mais estrada e gentes, vagamente lembrando o sismo primeiro, quando tudo começou, porém, sabendo que a toda a hora, em qualquer lugar do arquipélago, o chão pode fugir-lhes sob os pés e, quem sabe, engoli-los, pois há vulcões por todo o lado, uns mortos, outros vivos e alguns assim-assim. As crises sísmicas frequentes, felizmente, pois por isso pouco violentas ou destrutivas, não deixam esquecer a ameaçadora realidade.
E não só. Para além de se saber que a terra que os pés pisam pode trair-nos, sabe-se que de uma ilha não se pode fugir assim sem mais. É preciso avião ou barco que nos leve daqui. Muitos aviões e barcos seriam necessários para uma evacuação. Nunca a prisão da ilha é tão sentida como numa crise sísmica. Basta perguntar aos sobreviventes do terramoto de 80, que destruiu a cidade de Angra e muitas das freguesias da Terceira, matando poucas pessoas por ter sido a meio da tarde de um primeiro de janeiro, venturosamente solarengo, estando, por isso, muita gente fora das casas que ruíram.
Na Quaresma, tendo à esquerda o brilhante e infinito mar e, à direita, a verde e exígua língua de terra, caminham os grupos de romeiros no círculo imperfeito da ilha. Vestes ensopadas por chuva ou suor, coladas ao corpo. Vestes aladas puxadas para o alto por frescas brisas. Tudo neles, corpo, canto, movimento, reflete a sua fragilidade e a sua fé. “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar.” Bem se vê que são homens feitos do pó das estrelas.