Este é o mais incompreensível orçamento de todos os tempos. Já tivemos orçamentos de contenção e orçamentos despesistas. Já tivemos orçamentos pessimistas, realistas, ambiciosos, otimistas e mesmo delirantes. Já tivemos orçamentos de governos minoritários, de maiorias absolutas, de coligação e alimentados a queijo limiano. Já tivemos orçamentos que não davam cavaco a ninguém e outros que nos conduziram, cegos e surdos, com grande estrondo, direitinhos a uma grande parede. Como já tivemos, também, noutros tempos, mas não tão longínquos assim, orçamentos com a assinatura do FMI. Mas, apesar de tudo, nunca tivemos um orçamento como este.
Esta proposta de Orçamento, mesmo que não chegue a ser Orçamento, fica para a história com um rol invejável de recordes. Um deles, talvez o mais impressionante, está na sua absoluta falta de sentido. Ou, visto de outra maneira, na consagração do sentido único da faturação: dispara sobre tudo o que mexe e com artilharia pesada. O saque será rápido, mas o aparecimento dos corpos também. E os corpos, quer as contas de Gaspar o reconheçam quer não, deixam de pagar impostos.
Para que serve um Orçamento em que ninguém acredita? Para que serve um Orçamento que se apresenta como uma espécie de certidão de óbito anunciada? Que sentido faz multiplicar pressupostos e projeções que aparecem, aos olhos do simples bom senso, da experiência comum, como algo completamente fora da realidade? Como aceitar um raciocínio que repete, em dose reforçada, os erros do raciocínio anterior, corrigindo os desvios com agravamentos da causa “desviante”?
Este é um Orçamento autoimune. Vai morrer com os anticorpos que inevitavelmente criará: falências, desemprego, e mais falências e mais desemprego. E mais fuga ao fisco, e mais incumprimentos, e mais injustiça, e mais conflito, e mais abandono, e mais exclusão, e mais pobreza… Carrega nos impostos e vai suscitar menos receita. Combate o défice e vai abrir mais o buraco. Que bola de cristal terão Vítor Gaspar e Passos Coelho que lhes mostra um mundo diferente daquele que todos os outros anteveem?
Este é, eventualmente, o Orçamento mais arriscado e falível de todos os tempos. E é igualmente o Orçamento com menos projeto de futuro, com menos mensagem política mobilizadora e agregadora. Revela preconceitos e objetivos ideológicos, mas não assenta num verdadeiro e consequente projeto político.
Limita-se a aproveitar, sem sombra de pudor e com muito duvidosa legitimidade política, a fragilidade da situação económica e social do País para fazer mais do que devia e do que está obrigado, para alcançar metas de que nunca conseguiria aproximar-se numa situação de estabilidade e de equilíbrio das forças sociais.
Este não é um Orçamento violento ou duro, é um Orçamento impiedoso. E é, sobretudo, um Orçamento arrogante. Um Orçamento que, sob a capa de uma polidez irrepreensível, despreza a oposição de esquerda, aliena o apoio do centro e ignora o desconforto do próprio parceiro de coligação.
Este é o Orçamento que enterrou de vez o grande trunfo do “esmagador” apoio popular ao plano de resgate assinado com a troika. E, por isso, infelizmente para o País, o PS a confirmou, com o seu chumbo deste Orçamento, o fim das “tréguas” que pacientemente tentou manter com este Governo de “salvação nacional” do PSD-CDS/PP.
E resta ver se o PP não seguirá pelo mesmo caminho até ao final da discussão do documento. É que isto de se estar e não estar com o Governo, de se estar e não estar com o aumento brutal de impostos, de se estar e não estar com este Orçamento e com tudo o que dele decorre, é uma situação pouco clara, pouco saudável e pouco sustentável. Como também o é a deste PSD, com grande parte do partido sem saber bem se é ou não é a favor deste Governo, se é ou não é a favor desta política e se é ou não é a favor deste Orçamento. Se os deputados da coligação que já disseram cobras e lagartos da proposta votassem em coerência com o que andam a dizer, o Orçamento de Estado chumbava na Assembleia da República.
Mas este é, também, um Orçamento pouco digno de um regime democrático. Porque não recuou um milímetro depois de ter sido, inesperada e antecipadamente, submetido a um escrutínio público de que resultou um grande e unânime repúdio desta política, incluindo-se aqui um largo e significativo coro de vozes vindas do seio dos próprios PSD e PP. E porque, a fazer fé nas palavras do ministro das Finanças, não deixa espaço para o regular funcionamento da democracia, já que é enviado para apreciação e votação da Assembleia da República com a indicação de que não tem margem para correções.
Este é, por fim, um Orçamento que está disposto a sacrificar uma larga fatia do tecido empresarial, que está disposto a sacrificar o presente e o futuro de inúmeros portugueses, de pessoas como nós e iguais a nós, de gente que sofre como podem sofrer a nossa família e os nossos vizinhos e os nossos amigos e os nossos colegas de trabalho. Em nome de quê e de quem?
Gaspar diz que abrandar é deitar por terra o que já foi feito. Infelizmente, não abrandar parece ser o caminho certo para deitar por terra tudo aquilo que o Governo fez, em alguns casos com assinalável coragem e verdadeiro sentido de dever.