O Governo assumiu, de forma muito clara, que não pode avançar publicamente com novas medidas de poupança, nem sequer propô-las de forma definitiva para discussão, enquanto não tiver a aprovação da troika. Fê-lo em resposta aos insistentes pedidos de esclarecimento dos parceiros sociais, que querem saber o que aí vem e gostavam de dizer uma palavra sobre o assunto. Não a vão dizer. As coisas são hoje o que são.
A troika e os mercados não deram particular importância ao chumbo parcial do Orçamento pelo Tribunal Constitucional (TC)… mas ficaram à espera das inevitáveis medidas de substituição, das medidas que vão tapar o buraco financeiro que foi aberto e que terão de surgir num novo Orçamento para este ano. E elas vão chegar, mais cedo ou mais tarde, atingindo novamente as prestações do Estado em matéria de Segurança Social, Saúde e Educação e, numa outra ótica, atingindo, sobretudo, os funcionários públicos.
Por mais voltas que se dê, chegamos sempre ao mesmo ponto: as receitas que o Estado consegue arrecadar, em cada ano, não pagam os encargos assumidos durante esse período. E é esse o quebra-cabeças que é colocado, todos os anos, há já muitos anos, aos sucessivos ministros das Finanças. Toda a gente virou a cara ao assunto, enquanto foi possível fazê-lo, mas deixou de o ser no dia em que Portugal, no final da era José Sócrates, pediu auxílio financeiro ao exterior. E, hoje, com dois anos de governação de Passos Coelho, podemos fazer muitos exercícios técnicos para tentar perceber se, descontando isto, aquilo e aqueloutro, estamos “estruturalmente” melhor que antes. Mas, olhando para as contas, preto no branco, estamos mesmo pior, pelo que continuamos com o mesmo dilema de sempre: ou mais impostos (ainda mais) ou menos despesa.
A decisão do TC bloqueou o caminho mais fácil para o Governo, o das medidas excecionais, como era o de lançar a mão aos dois subsídios de férias da Função Pública. Privado da poupança gerada pelo não-pagamento de um deles, e “penalizado” também pela proibição de reduzir outras prestações a camadas mais desprotegidas da população, não resta ao Executivo outra alternativa que não seja a de começar a mexer em matérias mais estruturantes, aquelas em que tem evitado tocar até agora.
É aqui que vão entrar as reformas do Estado e da Função Pública, nos planos quer de regulação do trabalho, quer das prestações sociais, quer, eventualmente, das tabelas salariais. Sempre em nome da necessidade de cortar a despesa pública e de reduzir o peso relativo dos custos com pessoal no total dessa despesa. E, agora, alicerçado, ainda por cima, numa alegada legitimidade acrescida, decorrente da decisão do TC, para estabelecer maior igualdade entre trabalhadores dos setores público e privado, uma matéria que não é linear (como se pode ver a partir da página 44) e que nunca será pacífica.
Mas o Governo irá também, a par do corte de orçamentos, transversal aos vários ministérios, continuar a contrair as prestações nas áreas da Segurança Social e da Saúde à generalidade da população. E, muito provavelmente, aprofundar a política de corte seletivo de apoios, reduzindo a “universalidade” dos apoios públicos, retirando-os gradualmente de quem deles (alegadamente) menos necessita.
Tudo isto, se feito de forma mais ou menos profunda, pode acabar ainda por mexer no modelo de organização social e política que construímos desde o 25 de Abril, que encontra o seu enquadramento legal na Constituição e cuja proteção está atribuída ao Tribunal Constitucional…
Apesar da “remodelação” ministerial, também em termos políticos estamos de novo na estaca zero ou mesmo abaixo disso. O novo orçamento que o Governo vai apresentar, depois de discutir opções e caminhos com a troika, pode, facilmente, voltar ao TC. Com os sinais que se tem encarregado de fazer passar, é muito provável que se repitam, pelo menos, os pedidos de apreciação de constitucionalidade por parte de grupos de deputados. A concertação social ameaça ruir, perante o descontentamento crescente de todos os parceiros, patrões e sindicatos – e aqui ganha relevo o crescente distanciamento da UGT, peça fundamental para o diálogo social em Portugal. E quanto a uma base sólida, alargada, de consenso político-partidário sobre o que é necessário fazer, estamos conversados: parece um cenário longínquo e pouco expectável, passe embora o convite, de última hora, que Passos Coelho formulou a António José Seguro para uma reunião de líderes que se terá realizado nesta quarta-feira, 17, no mesmo dia em que PS e troika marcaram encontro.
E, no entanto, só um acordo alargado entre PS e PSD pode reduzir o elevado nível de risco em que hoje vivemos e que piora de dia para dia. Só um acordo entre PS e PSD nos pode dar o tempo, a tranquilidade e as condições para fazermos o que tem de ser feito, com o menor custo e o maior consenso possíveis. Só que isso, para ser possível, pressupõe o abandono de agendas escondidas e de programas mais papistas que as bulas papais.