Da janela vejo a rua completamente deserta, as lojas fechadas, ninguém, ou seja: é Carnaval. Pelo menos onde moro uma alegria esfuziante
(gosto deste adjectivo)
de silêncio e solidão. Nenhuma senhora de idade, de bengala
(não sei porquê há imensas senhoras de idade e bengala por aqui)
a conquistar duramente cada metro de passeio com um saquito na mão livre, de feições trancadas pelo esforço, nenhum homem a fumar na paragem do autocarro. Talvez a mercearia dos nepaleses esteja aberta
(daqui não alcanço a porta)
com uns caixotezitos de fruta que não me lembro de ver ninguém comprar. Os nepaleses são simpáticos e doces, mal a gente entra cumprimentam logo
– Obrigado senhor, obrigado senhor
atrás de um balcãozito minúsculo, simpáticos, doces, pequeninos, amabilíssimos, devem rapar uma fome de cão e continuam a sorrir. Como nunca vi um funeral de nepalês são capazes de ser eternos. Se lhe perguntar
– Vocês são eternos?
aposto que respondem
– Obrigado senhor
inalteráveis. Vendem isqueiros, cigarros, fruta, a ninguém. Se for lá dizer-lhes
– É Carnaval, sabiam?
aposto que aumentam o sorriso
– Obrigado senhor
a concordarem comigo. Concordam sempre, sentados em banquinhos, de guarda ao balcãozito. Onde dormirão? O que comem? Será melhor morrer à fome aqui do que no Evereste? Este quarteirão é habitado por três espécies de pessoas, as tais senhoras de idade e bengala, nepaleses e travestis sem clientes, plantados na berma do passeio em esperas intermináveis, de cabelo pintado de loiro com as raízes pretas. Os donos dos travestis largam-nos na esquina, vão-se embora e eles para ali ficam, de barriga ao léu, a raparem o frio de janeiro, com peitos descomunais sob casacos gastos, equilibrados em botas de saltos tortos. Já me conhecem, sou vizinho, cumprimentam-me
– Boa noite
que é, de certeza, o equivalente ao
– Obrigado senhor
dos nepaleses. E como sou vizinho tapam o peito num pudor que me cai bem. Às vezes apetece-me conversar com eles mas não me dão saída: logo a seguir ao
– Boa noite
cesso de existir, o seu olhar atravessa-me indiferente. Sempre que um automóvel se aproxima alargam as protuberâncias, entreabrem a boca, avançam um dos ombros. O automóvel passa sem parar e eles continuam à espera, murchando nos casacos gastos. Ser dono de um travesti não me parece grande negócio. E, entretanto, o Carnaval continua: a rua completamente deserta, as lojas fechadas, ninguém. Ontem, na televisão, vi raparigas meio nuas, às quais o adjetivo azougadas ficaria bem
(palavra de honra que é a primeira vez na vida que o utilizo)
a dançarem, frenéticas, com criaturas divertidas em torno a azougarem igualmente, num espetáculo pindérico, cheio de meninos mascarados e sujeitos gulosos, encantados com as raparigas cada vez mais risonhas, mais bem dispostas, mais remexidas, tudo aquilo, no fundo, tão patético como a tomada de posse de um governo, quando os novos ministros tiram a caneta do bolso interior do casaco para assinarem um livro em lugar de tirarem a pistola e matarem os colegas. Uma cerimónia pausada, digna, levemente idiota. João de Deus costumava mostrar aos seus conterrâneos de São Bartolomeu de Messines os dois edifícios principais de Lisboa. Dizia do primeiro:
– Isto é o teatro Dona Maria onde se representam as tragédias
e do segundo
– E este é o teatro de São Bento onde se representam as comédias
e ficava Lisboa toda vista. Na realidade pouco mais há. E os discursos? E os argumentos? E os erros de Português? E a imensa palermice daquilo tudo? Steiner para mim, em Cambridge:
– Nenhum aluno um pouco acima da média, nenhum, quer ir para a política.
Aqui, felizmente, não é assim. Fizeram todos o mestrado nos Morangos com Açúcar, e este é o nosso verdadeiro Carnaval. Da janela vejo a rua completamente deserta, as lojas fechadas, ninguém, uma alegria esfuziante de silêncio e solidão enquanto, numa vila de província, deputados e ministros se remexem, risonhos, ao longo de uma avenida qualquer, num arremedo de felicidade sinistra, contemplados por um povo de travestis pobres e nepaleses mais pobres ainda murmurando
– Obrigado senhor
aos Duartes Limas e aos Sócrates deste mundo.