Creio que já te falei do atletismo. Nas corridas de Carnaval, a meta era traçada com uma trincha no chão do terreiro. Para além de nós, que vínhamos de casa a pé, havia rapazes e raparigas que chegavam em carrinhas cedidas por juntas ou câmaras de lugares como Montargil, Elvas ou Figueira e Barros. Os da minha idade eram infantis, iniciados ou juniores. Prendiam os números na camisola com alfinetes e faziam exercícios de aquecimento em frente à igreja da Misericórdia. Desembrulhavam guardanapos para encontrar papo-secos com qualquer conduto ou analisavam moedas na palma da mão, que trocavam no café do ti João de Oliveira por pacotes pequenos de bolachas de baunilha, batatas fritas ou amendoins. Ao entrarem no café, passavam pela mesa dos prémios, estava na rua, encostada à vitrina. Havia medalhas, taças, enchidos, botas caneleiras, latas de tinta e outros produtos oferecidos pelos comerciantes.
Mas gostava de falar-te de uma memória bastante específica. Talvez me engane, mas acredito que poucos se lembrarão. Em alguns desses domingos dos anos oitenta, por ser Carnaval, a organização apresentou novas modalidades. A corrida dos mascarados, por exemplo, a que chamávamos “ensaiados”, juntava na linha de partida uma pequena multidão de gente desigual, usavam caraças de plástico e roupas velhas que não combinavam umas com as outras, deixavam cair todo o tipo de peças nos poucos metros de percurso. Havia também uma corrida de sacos, claro, era ganha por alguém que, atravessando um túnel de vozes, gritos de um lado e de outro, conseguia dar saltos longos e rijos. Entre estas modalidades de Carnaval, durante um par de anos talvez, houve uma corrida de bicicletas, era desta que te queria falar.
Ao contrário de todas as outras provas, em que se premiava os mais rápidos, nesta corrida de bicicletas ganhava o último a chegar à meta. Eram desclassificados aqueles que pousassem os pés no chão ou que andassem para trás. Durante cerca de cem metros, os inscritos tentavam andar o mais devagar que conseguissem. O vencedor era sempre um rapaz da rua de São João, o irmão mais velho do meu amigo Belarmino, que, nessa altura, conseguia equilibrar-se durante muito tempo, quase sem sair do lugar. Após a partida, rapazes em bicicletas de vários feitios, pasteleiras, bmx, levantavam o rabo do selim e davam meias pedaladas. Os mais novos eram os primeiros a pousarem os pés no chão. Às vezes, fingiam que não tinha acontecido nada e continuavam como se, debaixo de todos aqueles olhares, fosse possível que ninguém tivesse visto. Eu era um desses pequenos a que faltava paciência. Tinha uma bicicleta Órbita trazida de Águeda pelo meu pai, diretamente da fábrica, era a melhor bicicleta do mundo.
Mas gostava que reparasses nisto: uma corrida ganha pelo último a chegar à meta. A metáfora é evidente.
Os velhos acreditam que têm mais passado do que futuro. Por isso, prestam mais atenção a memórias do que a previsões. Interessa menos o futuro em que não se imaginam do que o passado ainda disponível para esmiuçar infinitamente, não faltam reflexões possíveis sobre o que sabem que existiu, o que testemunharam e sentiram com a força e a verdade dos sentidos. Sim, existe uma verdade nos sentidos, é inegável para quem a viveu. É ela que dá substância às metáforas, mesmo que seja preciso anos para reconhecê-la.
Os velhos não têm dúvidas de que o passado ainda não passou, como escreveu Faulkner. Aquilo que só hoje soubemos acerca do que já passou é presente e, como um gancho, puxa esse episódio para o tempo em que estamos. Se achávamos que o passado era uma coisa e, depois, percebemos que era outra, então o passado ainda está em evolução, ainda não passou.
Nas corridas de Carnaval, nessas bicicletas em que tentávamos andar tão lentamente como se não andássemos sequer, subtraíamos tempo ao tempo, resistíamos. Onde estarão agora esses segundos ou minutos? Procuro-os à minha volta. Velho, distingo restos dessas manhãs entre o que sou capaz de pensar. O que vivemos ainda está aqui, só quem fomos desapareceu para sempre.