Alain de Botton, aquele senhor de sorriso rasgado e careca iluminada a quem gosto de chamar o filósofo do bom senso, tem feito um grande favor ao mundo ao explicar a inutilidade e os perigos do amor romântico. Eu que o diga, que passei duas décadas a escrever romances que seguiam por essa via e trinta anos crónicas com o coração acima da cabeça, coisa que só é possível em existências dominadas pelos ideais do romantismo.
Num dos seus inúmeros e brilhantes vídeos realizados pela School of Life, de Botton explica porque não devemos esperar tudo do nosso parceiro. Vivemos numa sociedade que nos faz acreditar que a pessoa com quem partilhamos a nossa vida tem de ser um match em tudo, desde a cama até à cabeça, passando por hábitos alimentares, interesses comuns, práticas desportivas e sintonia de horários. Ou seja, se sonhamos em explorar as montanhas do Ladak de mochila às costas, o nosso parceiro deve alinhar igual entusiasmo e convicção. O mundo a dois parece tão mais seguro, fiável e belo! Queremos crer na simbiose amorosa como se dela dependesse toda a nossa felicidade e chegamos a invejar secretamente aqueles casais que nunca se largam, que transbordam ao mesmo tempo cumplicidade, paixão e uma linda família de vários rebentos em escadinha, mas aquilo que parece ser uma bênção, pode na verdade ser um desastre.
Esperar que o outro seja tudo aquilo que sonhámos e corresponda a tudo aquilo que ambicionamos numa relação é como acreditar que se pode ganhar a lotaria da vida. Este é o título de outro vídeo do mesmo filósofo, no qual ele cria uma analogia entre as pessoas de baixa condição económica que compram bilhetes de lotaria acreditando num milagre e o comum mortal da classe média que também acredita que pode ter tudo na vida: uma carreira profissional sempre em ascensão, um parceiro fiel e sempre de bom humor, uma reforma desafogada e um morte tranquila, quem sabe embalada pelo sono. Se a filosofia é a arte de nos pôr a pensar na nossa existência, então Alain de Botton é um dos maiores mentores do mundo moderno. A capacidade de síntese, a clarividência apimentada com autoironia e a limpidez com que comunica são notáveis. Se ainda não sabe do que estou a falar, vá ao Youtube e escolha um vídeo ao calhas. O mais provável é nunca mais deixar de o seguir.
Voltando ao tudo ou nada nas relações amorosas, de Botton não pode estar mais certo quando defende que os casais em fusão dão uma grande confusão. Existe uma linha muito ténue entre amor e co-dependência. Não sei quem escreveu que o amor é sobretudo hábito, mas é uma maneira de expressar literariamente a mesma ideia. As pessoas habituam-se a fazer tudo juntas e depois começam a funcionar mal sozinhas. O que de Botton defende é que entre casais devem existir algumas áreas comuns de interesses fortes e enraizados, enquanto em muitas outras cada um deve ter o seu espaço e seguir o seu caminho. Isto quer dizer que não devemos ser obrigados a levar com o cozido à portuguesa da sogra todos os domingos, se gostamos mais de ir para a praia no verão ou a uma exposição no inverno, porque temos o direito de não gostar de cozido ou não simpatizar com a sogra. Ou de gostar de cozido e de simpatizar com a sogra, mas não aguentar os gatos da sogra e o subsequente cheiro a gato do seu apartamento que consideramos sempre pouco arejado.
Cultivar e manter um elevado grau de independência não deve ser visto como um ataque ao outro, mas ao contrário, como uma garantia da solidez da relação do casal. Os casais estáveis são aqueles que aprenderam a respeitar as diferenças e o espaço do outro, numa dinâmica baseada na confiança. Em vez de estarmos sempre a cobrar ao outro tudo aquilo que nunca foi e que não por nós e para nós, vale a pena valorizar aquilo que nos pode dar e o que está disposto a fazer. É ver o copo meio cheio e deixar rolar o marfim.
Cabe a cada um saber o que de facto é o mais importante para que a relação valha a pena. Valores, interesses e critérios variam tanto como os tons das cores primárias num catálogo Pantone e cada um sabe de si. No entanto, a arte de construir uma relação sólida tem muito mais de bom-senso e de razoabilidade do que de inflamadas tiradas românticas enfeitadas com ramos de rosas encarnadas. Embora eu seja uma eterna defensora do romance cultivado no charme do quotidiano e defenda com unhas e dentes que uma relação sem um forte vínculo erótico é como uma casa sem teto na Irlanda que a chuva acabará por danificar, também já aprendi que as grandes paixões conduzem quase sempre a grandes catástrofes. No maravilhoso reino ilusório de uma paixão o tudo ou nada vale para tudo, mas no mundo real, é impossível chegar ao tudo numa relação. Afinal, o amor só interessa se for possível. E para ser possível, é preciso dar tempo e espaço ao outro para respirar e para voltar cheio de saudades.