No princípio, é o sorriso. Aquele sorriso rasgado que faz quebrar qualquer tipo de gelo à primeira vista. Mafalda usa-o como o seu cartão-de-visita. E depois, sim, vem o verbo. Quando fala, Mafalda Ribeiro é gigante. Maior do que os seus 97 centímetros, maior do que a sua cadeira de rodas, maior do que as dores permanentes que ficaram das mais de 90 vezes em que partiu ossos, maior do que a sala onde está e maior do que o tempo. Ouvi-la tem, na maioria das pessoas, o impacto de uma volta a alta velocidade numa montanha russa. Passamos da gargalhada às lágrimas, pasmamos, ficamos chocados, divertidos e admirados. Psicanalisamo-nos. No fim da “viagem”, termina-se, isso é certo, com uma enorme admiração por esta mulher de 32 anos que vive com osteogénese imperfeita, uma condição congénita rara, mais conhecida como a doença dos ossos de vidro, que a impossibilitou desde sempre de andar. Sentimo-nos, curiosamente, pequeninos, pequeninos ao pé desta mulher com força super-concentrada em 23 quilos.
Já me tinha cruzado com a Mafalda antes, e entrevistei-a agora para a edição desta semana da VISÃO. Escolhemo-la, à beira de um novo ano, porque coragem e determinação são os seus nomes do meio. Licenciada em jornalismo, trabalhou oito anos numa empresa, de cujos quadros se demitiu há dois para trabalhar por contra própria como autora e oradora motivacional. Convidada frequentemente para palestras (já fez dois Ted Talks e é colunista da Bolsa de Especialistas da VISÃO online) e envolvida em inúmeros projetos, tem uma agenda social intensa e uma lista de contactos que vale ouro – conhece meio mundo e metade do outro, trata por tu dezenas de figuras públicas.
Divertida, contestatária, lutadora, resistente, não aceita um não como resposta e usa o humor como arma contra a adversidade. Aceitar, aprender e somar – mesmo com as coisas más que lhe acontecem –, e seguir em frente são os seus motes. Está-se nas tintas para as nomenclaturas (refere-se, por exemplo, sempre a si própria como “Def”), não quer saber de convenções (detesta o tom complacente de quem trata os portadores de deficiência “como heróis ou coitadinhos”), é crítica e contra-corrente (“Não são os outros, temos de ser nós deficientes. Se queremos ser incluídos, temos de nos fazer incluir e incluir também”). É irreverente e vaidosa como muitas mulheres (coleciona sapatos embora nunca tenha andado pelo seu próprio pé). Obrigada é a palavra favorita do seu dicionário.
Ao contrário do que se poderia esperar, esta não é uma conversa sobre deficiência e inclusão. É uma conversa muito politicamente incorreta sobre uma forma sabedora de estar na vida, sobre aceitação, sobre superação. Sobre otimismo e energia positiva, sobre a tão banalizada palavra da resiliência, usada ao desbarato e atribuída a quem tem de ultrapassar as mais pequeninas adversidades da vida. Se existisse uma pós-graduação em resiliência, Mafalda seria a melhor das professoras catedráticas. Ela é a prova de como é possível transformar fraquezas em forças, e de como, com a atitude certa, se consegue sempre dar a volta por cima. Um exemplo de vida, não apenas para os que são portadores de deficiência, mas para todos.
Terminámos esta nossa conversa com uma foto para posteridade: entrevistada e entrevistadora abraçadas, uma ao colo da outra, embaladas por uma gargalhada geral. Muito pouco convencional, é certo, mas nada nela é comum. Obrigada Mafalda! Bem sei que não gostas da conversa dos heróis, mas entraste definitivamente na minha “shortlist”.