Da mesma forma que é nos momentos difíceis que descobrimos quem são os nossos verdadeiros amigos, também é nos momentos de caos que conseguimos avaliar o verdadeiro estado do País. E aquilo que vimos, na última semana, com uma “crise energética” provocada pelo efeito simultâneo de uma greve de apenas 800 camionistas conjugada com uma corrida descontrolada de milhares de automobilistas aos postos de abastecimento de combustível provou que Portugal, independentemente do comportamento da economia ou do grau de participação política, é um País dependente de três realidades: do transporte rodoviário, da energia criada por combustíveis fósseis e do papel do Estado para resolver ou mediar qualquer conflito. Isto com uma agravante: em momentos de “aflição”, quando sente que as suas deslocações podem ficar afetadas, grande parte dos portugueses tende a entrar em ritmo de “salve-se quem puder”, contribuindo, de forma inconsciente, para piorar a situação. Só que este pânico tem, na verdade, uma causa: o facto de as pessoas sentirem que não existe alternativa ao transporte individual e, portanto, ao pavor de não poderem deslocar-se se os seus carros ficarem sem combustível.
Esta dependência ao transporte rodoviário tem uma explicação clara: foi o único setor em que se investiu fortemente nas últimas décadas, com a construção de dezenas de autoestradas a cruzarem o território, além de diversos incentivos (financeiros e de estatuto social) à compra de automóvel próprio. A mobilidade ficou, assim, restringida ao asfalto e nada mais, com as linhas de comboio, progressivamente, a serem abandonadas ou nunca melhoradas.
O resultado foi aquele que se viu nas vésperas da “ponte” da Páscoa: apesar de, tantas vezes, nos apresentarmos ao mundo como campeões das energias renováveis, graças às barragens hidroelétricas e às centrais eólicas que nos permitem proclamar, de vez em quando, que passamos dias a consumir eletricidade produzida apenas por fontes “limpas”, a realidade é que continuamos completamente dependentes do petróleo e dos seus derivados para nos podermos deslocar no País. Conforme descobrimos, para surpresa geral, até o abastecimento de combustível ao maior aeroporto português é feito por via rodoviária – mais de uma centena de camiões-cisterna cruzam, diariamente, o asfalto entre Aveiras e a Portela – porque nunca se tomou a decisão de avançar para a construção do oleoduto que costuma servir, por norma, esse tipo de infraestruturas.
No período mais tenso da greve, a Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE) apresentou as suas contas sobre o consumo de combustíveis em Portugal: cerca de 2,9 mil toneladas de gasolina e 13,6 mil toneladas de gasóleo por dia. São números que nos deveriam fazer pensar e refletir – por razões urgentes: Portugal assumiu o desafio de ser neutro em emissões de dióxido de carbono, até 2050, como compromisso para tentar travar o aquecimento global e minorar os efeitos das alterações climáticas. É o futuro do planeta que o exige.
Mas a dependência mais curiosa que esta curta “crise energética” sublinhou foi aquela que é, porventura, a mais antiga e resistente em Portugal: a dependência do Estado. Sim, aquele mesmo Estado ao qual se passa a vida a apontar as “gorduras” e que alguns criticam por “asfixiar” a economia e a livre iniciativa. Porém, perante um conflito entre uma associação patronal e um sindicato recém-criado, a verdade é que foi preciso aparecer o representante desse Estado – neste caso o Governo – para mediar as conversas, travar o conflito e obrigar as duas partes a comprometerem-se com um calendário de negociações até ao final do ano. Uma solução simples e eficaz, como se viu. Mas fica a pergunta: os dirigentes do Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas e da ANTRAM não a poderiam ter encontrado sozinhos, sem mediadores, frente a frente e olhos nos olhos? Há dependências, de facto, de que nos custam a libertar.
(Editorial publicado na VISÃO 1364 de 25 de abril)