Quando tudo começou a correr mal com o Livre recebi imensas mensagens de amigos e familiares questionando-me a razão porque deveriam continuar a confiar neste partido. Fui ver retrospectivamente a minha história de ligação ao Livre. O momento político do tempo da fundação deste partido era o pior que eu havia conhecido, e não esqueço a forma como o governo de então tratou os mais vulneráveis cidadãos deste país.
Conhecia o Rui Tavares através do que escrevia no Público e das suas outras intervenções mediáticas. Acompanhei o nascimento e fundação deste partido porque me trouxe confiança de que podíamos fazer todos mais e melhor, de forma livre e democrática, e com a consciência de que todos, todos mesmo – os pobres, os ricos, os doentes, os velhos e crianças, os deficientes, e os de todas as cores – constituem a realidade cosmopolita de que fazemos parte.
Gostei particularmente da visão de Rui Tavares porque a minha formação, principalmente a religiosa, defende que ser cosmopolita não é apenas admirar as diferenças, mas ser pluralista: i.e., não apenas conhece e aprecia viver com a diferença, mas, mais importante que tudo, sabe construir com ela, mesmo que não goste dessa diferença! E é precisamente porque aprendi com a doutrina religiosa que sigo valores como este que me manifestei logo contra a primeira proposta do Livre sobre a abolição das aulas de educação religiosa e propus que se repensasse um novo modelo de educação sobre as religiões.
Mas voltando ao Livre. Para mim o Livre é o Rui Tavares e a sua visão do mundo e para o mundo. Uma visão sobre a qual, mesmo discordando em várias coisas, me faz pensar que podemos construir conjuntamente um mundo mais justo, mais fraterno, mais livre e democrático.
Foi neste paradigma ideológico que o Livre, em eleições primárias, escolheu os seus candidatos para as eleições legislativas. Propor uma mulher, uma mulher negra e gaga, como cabeça de lista de um partido novo que chega pela primeira vez ao Parlamento português, foi uma decisão da maioria dos membros do Livre. Foi um feito que nos orgulhou mas que custou também muito defender – e todos os que se bateram por esta eleição sabem o que foi. Por este facto, ninguém pode esperar agradecimento algum. Trata-se da projeção e materialização de uma ideia política do Livre. Mas também não se podia esperar o contrário, que foi o que Joacine Katar-Moreira fez, infelizmente.
Uma razão que penso poder estar subjacente a toda a celeuma e tensão partidária estará eventualmente ligada à dinâmica intergrupal e inter-individual que os grupos humanos habilmente utilizam enquanto reflexos do preconceito, racial, sexual, ou outro. Não posso deixar de pensar nisto, não apenas porque a minha investigação académica é exatamente esta, mas também porque eu mesma vivo a discriminação de várias formas, todos os dias. E discrimino, consequentemente.
Na verdade, e já pensei nisto várias vezes, Joacine poderá estar a passar por um momento de burnout perante toda a pressão mediática, e perante tanto discurso de ódio e racismo. Sim, já vivi momentos iguais. Não é fácil! E, sei, por experiência própria, que em momentos de fragilidade maior nos sentimos menos acompanhados e, consequentemente, também erramos. E, sendo verdade que Portugal, e todos nós, incluindo os discriminados, vivemos numa realidade profundamente preconceituosa, não podemos colocar a atuação política fora do contexto político! Porque política é política!
Para os que continuam a defender que o racismo estrutural acaba por fazer caminho de exclusão dos que moralmente gostariam de ver integrados, eu defendo que o racismo não é exclusivo do dominante para o dominado. As estratégias de defesa e de busca de auto-estima propõem aos sujeitos humanos, e às minorias, formas de superação, como de resto é desejado que assim seja. E, em consequência, é preciso recordar que o resultado final é que “o zoo funciona para os dois lados”, como ainda ontem me lembrou, e bem, a minha filha.
Dito isto, e raciocinando a partir da teoria do racismo estrutural, o comunicado de Joacine, em que justifica o seu sentido de voto relativo ao Livre perante um assunto relativo a direitos humanos, como resultando de falta de comunicação entre ela e seu gabinete de quatro assessores, e a direção do Livre, continuo a interrogar-me sobre em que momentos específicos estas tensões identitárias, se é que entraram em jogo, terão sido reciprocadas, e, consequentemente, poderão ter jogado a favor ou contra os mal-entendidos?
Enquanto aguardo pelos resultados da avaliação do Conselho de Jurisdição para saber devidamente o que aconteceu para existir esta fractura interna entre a deputada e o grupo de contacto, e depois de ponderar se haverá algo em que o meu contributo ainda possa ser útil, tomarei uma decisão final relativamente à minha posição neste partido.
Quero contudo manifestar que estou profundamente desagradada e descontente com o Livre tal como ele se faz representar por Joacine Katar Moreira. Este Livre não nada tem a ver com o partido ao qual me associei desde 2015, a convite de Rui Tavares. Espero também que, na sequência da assembleia e decisões tomadas no sábado passado, na presença primeiro de Joacine e seus quatro assessores, e depois de duas das assessoras que ela deixou em sua representação, que os atores políticos principais do Livre cresçam, assumam a maturidade que lhes foi confiada, e que trabalhem como é esperado que façam.