De há muito que entendo que um dos aspectos centrais na educação escolar e familiar de crianças e adolescentes é a promoção da sua autonomia.
Esta autonomia tem várias dimensões e implicações no quotidiano das famílias e das escolas e que muitas vezes abordo com profissionais e pais ou encarregados de educação.
A título de exemplo, uma das questões que mais vezes os pais, sobretudo de adolescentes e raparigas, me colocam é “A partir de que idade posso deixar sair a minha filha à noite?”. É claro que não se trata de uma questão centrada apenas na idade, conheço muitos adultos que também não deveriam sair à noite, é uma questão de autonomia e auto-regulação.
Um outro exemplo, há algum tempo para um trabalho na comunicação social, o jornalista perguntou-me “Quando devem (ou podem) as crianças deslocar-se sós para a escola?”.
Também esta questão não tem resposta conclusiva, existem muitos aspectos a considerar, o contexto geográfico e social, os riscos potenciais, entre outros mas, mais uma vez está sobretudo em causa a autonomia e auto-regulação da criança de cada criança que como já disse dever ser considerada em múltiplos planos e desde muito cedo, sempre de acordo com o que em cada idade deve ser promovido em matéria de autonomia. Uma criança de quatro anos deve ser incentivada a funcionar autonomamente em diferentes circunstâncias e noutras não pode, não deve, prescindir da supervisão ou ajuda do adulto.
Parece-me de clarificar que quando uma criança ou adolescente “faz o que quer” ou se transforma num “pequeno ditador” não é um sinal de autonomia, é algo quase em sentido contrário, ausência de auto-regulação, de capacidade de decisão sobre comportamentos adequados.
Para ilustrar como a educação parece promover pouca autonomia nas crianças recordo um estudo divulgado em 2015 realizado pelo Policy Studies Institute que numa comparação dos estilos de vida de crianças e adolescentes entre os sete e os quinze anos em diferentes países mostrou que as crianças portuguesas revelam um dos mais baixos níveis de autonomia na mobilidade.
Em muitas situações em que abordo estas questões recordo um texto de Almada Negreiros “… queria que me ajudassem para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si“.
Este articulado representa bem o que do meu ponto de vista será a essência da educação em contexto familiar ou escolar e qualquer que seja a idade, “saber cuidar de si”.
De facto, qualquer processo de natureza educativa ou formativa em qualquer contexto e em diferentes tipos de actividade tem como objectivo a capacidade de realização autónoma e eficiente das actividades e a utilização adequada dos conhecimentos e competências em desenvolvimento.
Este entendimento tem a sua tradução na tão divulgada ideia de “ensinar a pescar, em vez de dar o peixe” e, insisto, nos diferentes contextos de vida das crianças e adolescentes, designadamente, casa e escola.
A investigação nestas matérias e a experiência acumulada mostram que crianças e adolescentes com baixos níveis de autonomia tornam-se menos tolerantes, mais inseguras e com o risco de efeitos negativos no seu comportamento futuro
Assim, sublinho continuamente a importância de fomentar e assumir estilos educativos e metodologias de ensino que incentivem e promovam a autonomia de crianças e jovens.
No entanto, o que se observa e as questões que tantos pais e encarregados de educação e professores colocam levam-me a considerar que por razões como os estilos de vida, a natureza dos valores sociais e culturais que nos estão próximos, as alterações nas dinâmicas sociais das comunidades, problemas de segurança, por exemplo, estamos a dar pouca importância á questão da autonomia embora os nossos discursos sejam frequentemente em sentido contrário, ou seja, afirmamos algo diferente do que praticamos.
As actividades de exterior, espaço pouco utilizado pelas nossas crianças, o risco (controlado obviamente), os desafios, dos jogos por exemplo, os limites, as experiências diversificadas em termos de contexto e natureza, constituem-se como ferramentas importantes no sentido de desenvolver a autonomia e auto-regulação e esta acção deve ser regular e continuada ao longo das idades.
Acontece também que um número muito significativo de crianças e adolescentes é solicitado a desempenhar um conjunto de actividades consideradas importantes mas cuja importância nem sempre se evidencia a não ser no sentido de lhes preencher o tempo transformando-as em “crianças-agenda”.
Em muitas situações também estas imensas actividades, apesar das eventuais competências ou saberes adquiridos que possam proporcionar não fomentam de forma sólida a autonomia e auto-regulação. Nem sempre as motivações ou escolhas das crianças e adolescentes são consideradas, não são envolvidas nas decisões, cumprem um caderno de encargos, mais ou menos interessante.
O risco é que crianças e adolescentes se tornem menos confiantes e capazes de tomar decisões no que lhes diz respeito alimentando a dependência de quem está à sua volta, pais e professores, para aprender e para regular adequadamente o comportamento.
Talvez possamos ilustrar esta questão da decisão autónoma e auto-regulada por parte dos mais novos com outro exemplo. Um adolescente que é educado sem que seja envolvido nas decisões sobre o que lhe diz respeito, naquilo, insisto, em que pode decidir consoante a idade e a matéria em apreço, muito dificilmente irá dizer “não” a uma oferta de um qualquer produto ou ao envolvimento com outros colegas em comportamentos menos adequados.
Todos sabemos, da experiência ou dos livros, que é bem mais complicado dizer não aos colegas que aos adultos. Só diz, “não quero” ou, “não faço” aos colegas quem de forma regular está a habituado a decidir, a fazer escolhas e é mais autónomo, mais seguro e mais autodeterminado.
Também no que respeita ao contexto escolar é bem mais previsível que os adolescentes tenham o comportamento adequado porque “decidem” que assim devem actuar do que o façam por medo das consequências, “ir para rua”, por exemplo.
Para terminar e resumindo, apenas crianças autónomas, autodeterminadas, auto-reguladas, estarão em melhores condições para recusar, dizer não, ao que é desejável que assim seja e também em melhores condições de agir de forma adequada. Sabemos, já aqui escrevi sobre isso, que lidar com os comportamentos de crianças e adolescentes pode não ser tarefa fácil mas é seguramente mais fácil quando são eles a decidir que agem de forma positiva e não que nós “tenhamos que tomar conta deles”, em casa ou na sala de aula.
Reafirmo a importância de que, desde cedo, a educação familiar, a educação escolar ou outro qualquer contexto de vida de crianças e adolescentes tenha como eixo importante a promoção da sua autonomia, da sua auto-regulação. Temos que fazer mais e melhor neste sentido.
Tenho a maior das convicções de que seria positivo para todos, mais novos e mais crescidos.
(Texto escrito de acordo com a antiga ortografia)