A culpa de ter crescido numa casa cheia de bichos é, no fim das contas, minha: tanto reivindiquei uma irmã que me enterrasse a solidão de uma primeira infância rodeada de rapazes que, para me calar o queixume e ainda o desgosto de ter perdido duas avós em menos de um ano (nenhuma criança devia saber em tão tenra idade o significado da palavra cancro), a minha mãe decidiu oferecer-me um gato (uma gata, na realidade, a temperamental siamesa Íris).
Seguiu-se rapidamente uma ínclita geração de felídeos que tomaram de assalto a nossa casa e os nossos corações, com uma displicência, arrogância e elegância que lhes são características, e que estranhamente garantem um lugar cativo para toda a vida a quem por eles é tocado. Nunca mais estive sozinha ou entediada, e desde logo me iniciei na hercúlea e interminável empreitada de identificar e adaptar-me a todas as suas manhas e complexa personalidade (não há outra hipótese: ninguém muda ou ensina seja o que for a um gato).
Um dos primeiros ensinamentos que adquiri foi que não se testa a sorte com um gato que abana a sua cauda – é o sinal de que o bichano não está interessado em interacções com humanos, essa espécie inferior com quem assentem coabitar, e é também por isso que cães e gatos à partida nunca se gramam: os cães abanam a cauda quando querem brincadeira, e assim começa geralmente uma saga de “perdido na tradução” entre o melhor amigo do homem e os indomesticáveis felídeos.
Foi em tenra idade e através do método científico que aprendi que os gatos raras vezes gostam de festas na barriga, e a observação das últimas três décadas da minha vida fez-me chegar à conclusão que um gato tricolor é sempre fêmea, e que um gato laranja é, na esmagadora maioria das vezes, macho.
Rapidamente assimilei com os gatos que independência não é antónimo de amor e fidelidade – um importante ensinamento para o curso natural da vida –, que os sofás devem ser o mais baratos possível (este ensinamento aplica-se também a quem tem crianças pequenas, que não arranham os estofos, mas decoram-nos com todo o tipo de materiais e alimentos que estejam à mão de semear), e que nenhum brinquedo caro (e tive todos quantos pedi) concede tantas horas de companhia (devíamos todos ser capazes de ronronar; não encontro manifestação física tão sublime quanto o romrom). A receita duma infância sem tédio? Um gato, um cordel, uma bola de papel de alumínio amachucada, um guizo, o reflexo de um espelho a dançar pela parede acima, um caixote de cartão, um par de pés escondidos debaixo de um lençol. Junta-se tudo, de uma vez só ou aos pouquinhos, e o resultado são memórias doces que o tempo não ousa erodir.
Mais cedo ou mais tarde vieram os cães – é inevitável: quem gosta de bichos gosta de todos eles, sem excepção –, com quem aprendi o significado de companheirismo e amor incondicional. A coisa não parou por aí: até à idade adulta convivi com uma pequena arca de Noé, que incluiu gatos, cães, passarada variada (importante aviso à navegação: adoro pombos, e trepo às paredes quando lhes chamam ratazanas com asas), peixes e tartarugas. Quase todos vítimas de abandono de humanos que envergonham a sua espécie, todos juntos debaixo do mesmo tecto, em cordial e saudável coabitação – um gato não resiste a um cão peludo no Inverno –, e todos, sem excepção, parte integrante da família.
Cresceram, envelheceram, eventualmente chegou a sua hora e partiram – com os meus animais aprendi a mais dura lei da vida.
É sem qualquer vergonha que lhes declaro em público o meu amor, e que confesso que já derramei um oceano de lágrimas pela minha família de quatro patas. Nunca me arrependi de partilhar a minha existência com os apelidados animais irracionais, mesmo com o peso e a névoa do desgosto.
Não é, portanto, de estranhar que a primeira coisa que fiz quando saí de casa, e dei início a essa aventura atribulada de ser crescida, foi ter um animal de estimação. Dois grand danois no banco traseiro de um Renault Twingo. Nunca esquecerei os meus doces gigantes.
O veterinário dos meus bichos, o Dr. Mário Almeida, que me conhece desde catraia imberbe, é bem mais do que um clínico especialista em animais – é um especialista em afectos e em pessoas que nasceram com este traço evolutivo distintivo: o do amor aos animais – já me poupou por diversas vezes uns trocos valentes em psicólogos, e aconselhou-me sempre a não desistir dos animais, mesmo depois de uma grande perda. E se é verdade que são sempre insubstituíveis, também é lei que o nosso próximo amigo de quatro patas nos vai ensinar sempre algo de novo.
Vieram então os gatos: do abrigo da União Zoófila, da beira da estrada nacional 228, do parque infantil onde uma ninhada com pouco mais de duas semanas de vida foi largada à sua sorte, debaixo de uma braseira de 40 graus. Adoptei um gato preto, sem superstições imbecis, quando estava grávida do meu terceiro filho – e, pasme-se, com tanto bicho que passou pela minha vida, não sou imune à toxoplasmose –, e voltei aos cães quando já tinha gatos alapados nos sítios mais insólitos da minha casa.
Adoptei um cão sénior abandonado e nunca vi tamanha dedicação e gratidão infinita. Recentemente fui contra todos os meus princípios (acontece de vez em quando) e comprei um cão quando estava de férias nos Açores, num pesadelo burocrático e logístico para quem viajava com quatro menores numa companhia aérea low cost. Neste momento tenho três seres vivos em casa a aprender a controlar os esfíncteres – duas filhas e uma cadela. E uma coisa impensável e inédita acontece com a minha nova cadela Cleópatra, um rough collie como a da série Lassie (que os meus filhos desconhecem o que seja a Lassie): comecei a acordar mais cedo para a passear e até corro com ela à chuva.
Os meus quatro filhos não conhecem outra realidade senão a de dividir a sua vida e o seu amor com três gatos e dois cães. Na rua não entram em pânico quando vêem um cão a correr na sua direcção; são desparasitados regularmente ao mesmo tempo que os bichos, e assistem diariamente ao maior quadro de felicidade de que há memória: ver um cão a correr atrás de uma bola, de um pau, ou de um pombo que nunca vão conseguir apanhar. Com os gatos aprenderam as fronteiras do bom senso e do amor comedido e menos estriónico.
Na semana passada a nossa gata Manga adoeceu repentinamente. O diagnóstico foi devastador. Na minha casa os gatos e os cães não vão para uma quinta: morrem. Juntámos a família, explicámos aos pequenotes que a Manga estava a morrer, que tínhamos aquela noite para nos despedirmos. A Carolina foi buscar o boneco favorito de bebé, deu-o à gatita e ainda conseguiu ter um quatro no teste de português apesar de ter o rosto e a alma desfeitas; o António fingiu que não percebeu e ignorou (mas percebeu tudo; é um mecanismo de defesa muito particular do cromossoma y), mas todos os dias chora com saudades; aos três anos, a Aurora desvalorizou porque o conceito de morte ainda não tem cabimento na forma pura e mágica como vê o mundo, mas anda à procura de cabeça no ar pela estrela e pela nuvem onde a Manga mora; e a Isaura, que começou a dizer as primeiras palavras há um par de semanas, afirma, pasma desde há uns dias: “o miau um’cacá”.
No dia seguinte, voltámos ao consultório para eutanasiar a Manga. Era o mínimo que podíamos fazer. Fomos de coração partido e de lágrimas teimosas que não hesitaram em soltar-se.
Foi tudo rápido e indolor. Não foi, aliás, a primeira vez que passámos por esta terrível decisão de pôr termo a um quadro de sofrimento. Desta vez apenas tivemos coragem de não prolongar egoisticamente o que tinha que ser feito.
A Sofia, assistente do dr. Mário, se calhar sem se aperceber, deu-nos as maiores palavras de reconforto possíveis: “é uma coisa muito fixe, a vossa família, o que vocês estão a fazer pelas vossas crianças, deixando-as crescer com uma família cheia de irmãos e de amigos de quatro patas”.
Os gatos fazem furor na Internet e não espero outra coisa para este texto: a nossa Manga merece-o.