Esqueçam os poemas sobre a sublime orquestra do regresso às aulas. A sinfonia do cheirinho a dossiês imaculados, do bailado das folhas em branco dos cadernos, da intrépida aventura das esferográficas em busca do saber e do conhecimento escondido no mapa do tesouro dos manuais escolares, do fado-tango entre o estojo, os lápis, os afias e as borrachas, ao lusco-fusco no fundo do baú dos tesouros que é uma mochila nova, a estrear, é profundamente esganiçada, sem compasso e fora de tom. Chegou Setembro e, com este mês que tem mania que é Janeiro, o mês de todos os (re)começos, começa o calvário do regresso às aulas.
As curtíssimas férias dos pais há muito que acabaram. Milhares de pais, sem opções, nem tão-pouco passaram férias juntos. Agosto é interminável, os três meses de férias escolares de Verão parecem infinitos, duram e duram, e o código do trabalho só garante 22 dias de descanso anuais. Mas o pior é mesmo o terrível Setembro. Vêm as batas, os lençóis, os resguardos, os sacos de chita conforme o modelo da escola, vem a conta calada dos manuais escolares a ceifar o orçamento até ao Natal e regressam as aulas e a tirania dos horários.
A vida não é fácil, como cantam as divas do jazz, referindo-se ao Verão, quando o maldito Setembro irrompe no calendário adentro deixando um rasto de devastação atrás de si: é uma gigantesca enxaqueca ao mesmo tempo que pais e filhos têm que fazer malabarismos olímpicos na corda bamba.
A creche, jardim de infância e escola primária começaram na terça-feira. De uma forma mística, quase bíblica, para não dizer incompreensível, a escola (que amo) só abre ao quarto dia útil de Setembro, encerrando também nos três últimos dias de Julho. Ficam-nos sete semanas com os meninos literalmente no colo. Vale-me um pai profissional liberal que aguenta todo o barco quase sozinho, enquanto eu brinco às executivas, sem direito a qualquer subvenção vitalícia, majoração na pensão de reforma, ou reconhecimento de que esta difícil profissão de ser pai é de desgaste rápido.
Depois vem a muito falada escola pública, para onde a mais velha já foi recambiada, que este ano se propagandeou que começaria mais cedo. Balelas, tão copy-paste do press release como aquele que dizia que tudo correu dentro da normalidade nos reembolsos do IRS. A sete dias do prazo máximo estipulado pelo ministério não há turmas, nem horários e inventou-se uma apresentação a uma quinta-feira, 15 de Setembro, o tal prazo máximo que foi bandeira política, para depois interromper na sexta, 16 de Setembro, e arrancar verdadeiramente na segunda, 19.
Esta semana, o alarme despertador teve de recuar à força uma hora. Juro que lhe senti uma resistência hercúlea. E foi recuando à razão de um quarto de hora, a cada dia que passou, sem efeito prático, numa descontinuidade da linha espácio-temporal que só acontece em Setembro: saí sempre atrasada, cheguei sempre atrasada à escola, as minhas olheiras e as dos meus filhos sobrepuseram-se ao dourado do bronzeado do Verão — começou o esverdeado do Inverno a alastrar. E ao terceiro dia levei o primeiro ralhete, advertência oral, recado na caderneta para casa, da nova professora da minha filha Aurora: não podem continuar a chegar a estas horas!
Chegou Setembro e o regresso às aulas, e eu juro que tentei, tento sempre: vou com determinação e com os depósitos de resiliência a transbordar. Mas é sempre em vão: já escancarei o botão de emergência
Qual é a minha utopia para o próximo regresso às aulas?
Queria que a matéria não se desse nunca à pressa no último período (porque não há aulas até ao fim da primeira semana de Julho?), e que a avaliação não se resumisse à média aritmética das notas alcançadas em dois testes a cada período. Que a avaliação contínua fosse mais do que a apresentação dos cadernos — as mentes mais brilhantes são sempre caóticas —, ou a participação na sala (então e os tímidos?). E os trabalhos de casa? Abolia-os, e substituía pelo ensino da música, obrigatório do primeiro ao décimo segundo ano.
Gostava que os professores (e pais) entendessem o que é o YouTube (e quem sabe o snapchat), fazendo das redes sociais seus aliados e dos seus filhos, explicando-lhes os perigos, as armadilhas, a ética e a etiqueta desta longa pegada tecnológica que mudou as nossas crianças, e que ainda ninguém sabe no que vai dar, para onde vai levar esta geração 4.0, conectada a toda a gente, a todo o mundo, por wireless, bluetooth e cabo USB desde que o cordão umbilical é cortado à saída do ventre materno. Gostava, porém, que o recreio fosse para brincar e não para andar de queixo caído para um ecrã táctil retroiluminado.
Sonho com manuais escolares gratuitos e com material escolar que durasse mais do que um ano lectivo. Idealizo um quadro de honra em que a cidadania, os valores da solidariedade e respeito pelo Homem, Ambiente e Natureza são tão ou mais importantes que as notas máximas na pauta.
Gostava que a democracia se ensinasse na escola, que a política fosse explicada e fomentada, e que a Constituição fosse um documento tão importante como os Lusíadas. Queria que ensinassem aos meus filhos o que é o IRS, a TSU, o IVA, a segurança social, o sistema nacional de saúde. E nos antípodas da formação intensiva em lidar e domar siglas misteriosas e burocracias variadas lhes incutissem o respeito pelos mais velhos e pela sua sabedoria sobre todos os assuntos e mistérios do mundo. Que aprendessem o nome das árvores e das flores.
Acredito numa escola orientada não para as médias ou para a empregabilidade futura, mas para a felicidade e realização pessoal. E queria que pai algum jamais dissesse a um filho que primeiro tem de tirar um curso indiferenciado e que depois logo pode fazer algo de que muito gosta como um hobby. Por isso, gostava que os cursos técnicos e profissionais não fossem olhados com desconfiança e preconceito e que se entendesse que sociedade nenhuma avança se não houver talento, gosto e paixão pelo que se faz.
Este é o meu Setembro imaginado, desejado.
Até lá, continuarei sempre em modo de sobrevivência. (E esta crónica chegou também atrasada! Espero ter falta justificada.)