Descia eu o Chiado num dia de chuva, entre um passo apressado e o medo de escorregar na calçada molhada, quando me foge um pé e me estatelo no chão.
É nesse momento que vejo alguém a correr na minha direção, de mão estendida para me ajudar a levantar. Lá me refiz, agradecendo o cuidado. Foi mais o susto. Disse ao meu simpático salvador. E, sorridente, lá continuei caminho até ao Rossio. É que escorregar na calçada portuguesa é very typical, mas ser salva por um fadista chega a ser engraçado! (Mal eu sabia que, anos mais tarde, teria a honra de escrever uma letra para o meu salvador. E que essa letra surgiria de um processo igualmente engraçado).
Tudo começou quando aceitei participar no novo disco do Stereossauro que, a convite da Valentim de Carvalho, está a fazer um álbum de hip-hop e música eletrónica todo baseado em samples de fado, nunca antes autorizados. Uma coisa incrível! Lá fiz o meu tema e, já depois disso, ele mostrou-me um instrumental arrepiante, com a voz da Amália, que imediatamente me tocou fundo. Liguei-lhe imediatamente. Disse que estava arrebatada, que aquele instrumental tinha de ser meu, mas, como já tinha feito uma música para o disco dele, o ideal seria que o pudesse utilizar no meu próximo disco.
O amigo Stereossauro, generoso como sempre, disse que se nenhum outro convidado o escolhesse, o beat seria para mim. Estava prometido. Passadas umas semanas, liga-me dizendo que tinha uma boa e uma má notícia. Pedi a má primeiro. Alguém tinha escolhido o “meu” instrumental. (Claro! Era bom demais para passar pelo processo celibatário). E a boa? Foi escolhido pelo Camané, que sugere que sejas tu a escrever a letra. Claro! Respondi entusiasmada. Será uma honra! Mas posso pedir só mais uma coisa? (Disse num derradeiro atrevimento.) Eu escrevo a letra para o Camané cantar no teu disco, mas depois faço a minha própria versão do tema para incluir no meu… Sim? Ele sorriu e aceitou o trato! A música teria duas letras, duas vozes, duas versões, em dois discos diferentes.
E assim nasceu a Flor de Maracujá, que pega no mote dado pelo sample com a voz de Amália, cantar como quem despe, para falar da entrega de quem canta por primitiva necessidade e, simultaneamente, por abnegado e derradeiro altruísmo. No meio da letra, em jeito de private joke (que aqui se torna pública), falo em cantar como quem alcança a mão na queda, numa referência ao momento em que fui salva pelo intérprete da canção num passeio no Chiado. Engraçadinha…
Hilariante foi ter de gravar a minha própria voz a cantar a letra e a melodia do tema, para enviar ao Camané! Passar pela vergonha de registar a minha cana rachada, cantarolando um fado para o gravador do telemóvel, e pela humilhação de enviar a gravação ao mestre foi pior do que mil tralhos na via pública! Sobrevivi e ele salvou-me novamente: o resultado é sublime! Ouçam-no nas plataformas digitais e no YouTube e, em breve, no disco Bairro da Ponte do Stereossauro. (A minha versão, só para o ano, quando sair o meu).
Vou cantar como quem despe
Cantar como quem cospe
Como alcanço a mão na queda
Como mordo o pão da fome
Vou cantar como quem serve
Cantar como quem sofre
Como sorvo o ar da fresta
Como murmuro o teu nome
Vou cantar como quem perde
Cantar como quem sabe
Como peço o céu na sede
Cantar como quem arde
Eu ofereço a minha voz
Flor que se dá
Estranha e bela
Como a do maracujá.
(Crónica publicada na VISÃO 1340 de 8 de novembro)