O uso da língua dobra os manuais”, como diz um amigo meu brasileiro, o poeta Thiago Camelo. Nós vivemos num período estranho em Portugal, onde coexistem duas convenções ortográficas: aquela que é estipulada pelo acordo ortográfico em vigor e aquela que a maioria das pessoas usa na sua escrita corrente. Eu escrevo de acordo com o que aprendi na escola. Já não vou a tempo de aprender uma nova ortografia. Mas dito isto, concordo que exista uma convenção. É obviamente fundamental que exista uma maneira que seja a correta, a oficial, de se escrever as palavras. As palavras já têm um sentido lato, lasso, bambo que chegue, já permitem muita folga no entendimento entre as pessoas, que fará se a sua grafia for, também ela, dúbia. Se eu escrever “árvore” posso estar a pensar num medronheiro e o meu interlocutor pode estar pensar numa alfarrobeira. Mas pelo menos fui claro, através de uma grafia fixa, que era duma árvore que eu estava a falar. Uma ortografia oficial pode evitar que de repente saia um míssil de um continente para o outro por causa de uma falha de comunicação que algum telefax mal grafado tenha permitido. A confusão entre o “massage” e o “message”, na pantera cor-de-rosa, que a diferença entre as pronúncias propiciou, teria ficado resolvida pela escrita, pela convenção ortográfica. E o que é que manda nessa convenção? Quando convencionamos, quando acordamos num conjunto de regras para a nossa língua, tudo o que temos de fazer é olhar à volta e ver como é que se faz. O uso da língua verga o manual. Nunca o contrário. Nunca nenhuma convenção poderá forçar-nos a alterar a nossa língua, falada ou escrita, isso seria aberrante. A língua é um instrumento fundamental de entendimento. Este acordo ortográfico é um bocado forçado, isso é óbvio. Mas este não me preocupa. Não me interessa, sequer. O que me interessa é aquele que está a ser convencionado na vida real, no correr dos dias, na verdade da vida. Esse sim, maravilhoso de assistir, milagroso. É a força da vida, da verdadeira inteligência, da adaptabilidade do ser humano a tudo aquilo que o rodeia, a acontecer diante dos nossos olhos demasiado distraídos. É o futuro da nossa língua escrita a ser realmente talhado pelas crianças e adolescentes nos teclados e ecrãs “touch”. O uso da língua dobra os manuais, e o uso da língua dá-se em teclados e ecrãs de smartphones. O uso da língua dobra os manuais e o uso da língua não se compadece com acentos, hífenes, tiles, cês de cedilha e letras redundantes. A escrita deve acompanhar a fluidez do pensamento e se, com a velhinha esferográfica sobre papel, um acento, uma cedilha e um til não representavam um embaraço de maior, no teclado tornam-se insuportáveis. As crianças de 11 anos usam duas convenções. A vetusta, serôdia e inexplicável grafia que se escreve com a inexplicável esferográfica na inexplicável carteira da escola, e aquela que se escreve na comunicação entre as pessoas. É convenção ortográfica da vida. Cai o redundante “u” que procede todo e qualquer “q”, caem os acentos (a maravilhosa solução de se acrescentar um “h” a toda a vogal que se pretende aberta é absolutamente genial), cai tudo aquilo que serve de entrave a um pensamento fluido e célere. Caem as gorduras. Já caíram, não adianta convencionar ao contrário. Não adianta dobrar a língua à força dos manuais. O “kapa” faz parte da nossa língua escrita. Voltou, e não adianta tentar blindá-lo à força de kk decreto. Caem as maiúsculas, porque não faz sentido carregar no caps lock ao mesmo tempo que se carrega noutra tecla. o resultado estah ah vista e eh mm preciso olhar p os teclados dos nossos sobrinhos de vez em qd. O mirc já tem 20, qd eh k vamos aprender? Eu nem sei escrever nesta ortografia, pareço um avô a tentar enfiar uma cassete de VHS dentro do aparelho, estou a fazer figura de urso. Mas lei é lei, e a lei da vida é a lei da vida.
(Crónica publicada na VISÃO 1333, de 20 de setembro de 2018)