Depois da dramática e ruidosa queda de Ceausescu, que mais do que uma revolução popular foi uma manobra do Partido Comunista e das todo poderosas forças mais ou menos secretas, como a Securitate. O País virou automaticamente democrático, todo o mundo odiava a Ditadura, ninguém, é claro, colaborara com ela, já se podia falar com estrangeiros na rua sem ter de comunicar à Securitate, podiam convidar-se pessoas para casa, podia-se falar quase livremente, a crítica era mais ou menos aceite, as pessoas pareciam livres, embora fosse estranho que os membros do Partido, instantaneamente reciclados, tivessem mudado completamente o seu discurso, os lugares de chefia passaram a ser ocupados por súbitos democratas que, na véspera, eram repressores ferozes, criaturas mais resistentes desapareceram como por magia, se havia alguém que fosse desagradável era logo considerado um sinistro comunista cruel e torturador, denunciavam-se antigos amigos ou rivais a fim de receber vantagens, uma nova classe dirigente tomou o lugar da anterior, os próceres mais habilidosos do antigo Partido eram, afinal, democratas convictos, as pessoas sentiam-se ao mesmo tempo contentes e com receio dessas súbitas cambalhotas e o País continuou a ser governado pelas mesmas criaturas que afinal eram liberais tolerantes, já se podiam convidar pessoas para casa, já se podia falar com estrangeiros, acabou-se a violência, acabou a crueldade, o povo tinha, ao mesmo tempo, esperança e medo, a Roménia tornou-se magicamente uma democracia embora toda a gente desconfiasse de toda a gente, as pessoas denunciavam-se umas às outras mas éramos livres, éramos tolerantes, éramos felizes. Se alguém nos fazia sombra era imediatamente apelidado de colaborador ou torcionário do antigo regime, filhos e amigos de velhos dirigentes tomaram o lugar dos anteriores, ninguém sabia que ninguém era de facto e de súbito, tirando uns tantos assassinados e presos, ninguém colaborara com a Ditadura Popular. Esta foi a Roménia que encontrei, a Roménia das constantes denúncias e dos constantes ajustes de contas entre antigos camaradas e uma nova classe dirigente emergiu de súbito, imaculada, virtuosa, sem qualquer relação com os antigos patrões, a maior parte deles que, ainda na véspera, faziam parte dos infinitamente privilegiados membros do regime. Mas o povo, desconfiado, mantinha-se num pavor reticente. Eu tinha estado em Berlim mais ou menos na altura da queda do muro e assistia, de boca aberta, a uma repetição do que se passava na Alemanha, embora latinamente mais desordenado e confuso. Toda a gente tinha medo de toda a gente, toda a gente desconfiava de toda a gente, quem tinha estado no poder continuava no poder, agora rotulados de democratas convictos desde sempre. Lembro-me, por exemplo, do presidente da minha editora na RDA, um feroz adepto do socialismo totalitário, mal educado e cruel, temido por todos, com um defeito físico que lhe aumentava a autoridade, que se transformou de súbito num tolerantíssimo democrata, todo amor todo bondade como dizia João de Deus mas que, na realidade, continuava a comandar a editora com a feroz e autoritária energia de sempre. Tudo isto me deixava de boca aberta e tudo isto era possível. Quando se queria apear alguém afirmava-se que era um perigoso comunista e aparecia logo um qualquer virtuoso no seu lugar, apeado, pouco tempo depois, por ser, quase de imediato, apelidado de perigoso extremista também. Claro que várias pessoas me segredaram abundantemente que Dinu era um comuna de pele de cordeiro. Nunca acreditei nisso porque éramos como irmãos e eu o conhecia muito bem. Tivera-o em minha casa em Portugal, conhecia as suas ideias e a sua luta durante a ditadura, tínhamos inclusive, se a situação se mantivesse, elaborado um plano para sair da Roménia através dos Cárpatos, região que ele conhecia bem por ser filho de camponeses desta zona. Mas, avisos de
– Toma cuidado com ele
eram constantes. Homens que eu conhecia e respeitava, como o Presidente da Associação de Escritores, organização poderosa e influente, foram acusados de traição e expulsos das organizações que chefiavam e a que pertenciam, tudo isto de uma forma violenta, trágica e terrível. Se no 25 de Abril o Partido Comunista tivesse ganho a vida em Portugal tornar-se-ia um inferno. Lembro-me, por exemplo, do Diário de Notícias onde mandava Saramago, e do modo ignóbil com que escreveu contra Ernesto Melo Antunes. Lembro-me da crueldade despropositada, da violência, da injustiça. Porém, a pouco e pouco, o nosso Partido Comunista foi-se transformando no grupinho meio perdido que agora é, condenado a dissolver-se, em meia dúzia de anos, uma agremiação cada vez mais residual e inimportante. Dinu continuou a escrever e a lutar com a mesma coragem, a qualidade da sua poesia continuou a crescer e é hoje, sem dúvida, um dos mais importantes artistas romenos. No meio do medo, da confusão, da perplexidade, mas também da coragem, fizeram-se na Roménia coisas importantes. Uma delas é o Museu da Literatura, com a estátua de Fernando Pessoa à entrada e um acervo magnífico. Não compreendo porque não temos também um Museu da Literatura, com quem colaborava, por exemplo, o grande escultor Mircia Dumitrescu e que é uma instituição exemplar. Porque motivo não temos um igualmente, com manuscritos e livros dos nossos autores de todos os tempos? O Museu da Literatura, em Bucareste, foi-se transformando numa instituição cada vez mais importante e um local que atrai novos leitores através do seu trabalho e das suas iniciativas. Seria um polo de atracção vital que arrastaria, sem dúvida, muitos e novos leitores. Queixamo-nos que os portugueses não lêem: essa seria uma forma de interessar os portugueses pelos seus grandes autores e por autores de outros países também. Actualmente a Roménia, mais pobre ainda do que nós, tem uma grande actividade nesse campo, com festivais por todo o lado e o Museu seria sem dúvida um polo aglutinador vital, se devidamente dirigido e administrado. É dos países que conheço com mais actividade nesse campo. Há semanas deram-me, por exemplo, o Grande Prémio do Centenário da Unificação da Roménia, que eu julgo devia ser atribuído a um autor romeno, com toda a pompa e circunstância. Porque não temos qualquer coisa assim em Portugal? Um povo é respeitado pela sua Cultura e a nossa é muito rica. Porque motivo nada fazemos pelos nossos Grandes Homens? Um Museu da Literatura, que celebre escritores do mundo inteiro, é, na minha pobre opinião, uma iniciativa importantíssima. O trabalho de José Pacheco Pereira, em Portugal, é extraordinário e único. Um homem como ele seria certamente capaz de organizar, aqui, um monumento desses. Haverá outros, talvez, mas é, sem dúvida, uma pessoa excepcional. Estão à espera que ele morra para o homenagearem devidamente? Porque não aproveitamos o que felizmente temos? Ele poderia ser o polo aglutinador de um trabalho cultural que teria certamente um imenso sucesso entre nós. Não o conheço mas tenho por ele o maior respeito e a maior admiração. Ele é, sem dúvida, a pessoa que mais tem lutado pela nossa cultura. Por que não dar-lhe todos os meios necessários? Quer se queira quer não é a criatura fulcral, o guardião dos nossos mais altos valores. De que estão à espera para o irem buscar? O nosso País merece um homem assim.
(Crónica publicada na VISÃO 1329, de 28 de agosto de 2018)