Deixemos de lado as várias princesas e os muitos museus das descobertas. Não faço qualquer tenção de entrar em jogos de soma nula. Interessa-me a questão de fundo. E a questão de fundo é que, lenta mas inexoravelmente, tem vindo a reduzir-se, em Portugal como em boa parte do Mundo, o espaço da linguagem permitida. O processo é mais deliberado do que pensam e é sempre igual. A coisa começa por uma leve sanção social. Um esgar, quando muito uma ligeira repreensão. Duas, três expressões. Mas, aos poucos, o Índex alarga-se. Mais umas entradas. E com o alargar do círculo do proibido, vai-se tornando também mais pesada a sanção que passa a fazer-se maioritariamente no espaço público. As redes sociais fazem as vezes das multidões ululantes dos novéis autos de fé. E enquanto o diabo esfrega um olho (as metáforas religiosas não são aqui um acaso), está interiorizada a autocensura, triunfo último dos modernos inquisidores.
Em nome da honestidade intelectual, devo reconhecer que também eu tenho consciência de que a linguagem não é neutra. Carrega sentidos profundos, reforça preconceitos, molda convicções de forma mais ou menos consciente, estimula comportamentos. Não é, pois, por aqui que passa a minha divergência com os novos censores. O meu problema, a minha irreconciliável aversão, é com o método. A censura, declarada ou sub-reptícia, expressa ou difusa, por muito que seja exercida em nome de belas intenções (e nem sempre é) debate-se sempre com um problema mais do que identificado. O da escolha dos censores. O da concreta definição do Índex. Ou, na formulação clássica, o problema de saber quem guarda os guardiões.
Felizmente, os liberais clássicos formularam, há muito, uma resposta eficaz para este problema.
Não negaram a existência de ideias insidiosas e repugnantes, não negaram (muito pelo contrário) o poder da palavra e da linguagem. Simplesmente não caíram na tentação de instituir silêncios, de definir um Índex, de nomear um inquisidor. Ao invés, a sua premissa é simples: de um debate aberto de ideias (na formulação clássica, de um “marketplace of ideas”), onde se podem livremente esgrimir argumentos e contra-argumentos, onde se fazem proposições e onde se podem refutá-las, as ideias insidiosas, as proposições grotescas, acabam sempre, mais devagar ou mais depressa, por ser expostas e por ser rejeitadas. É nesta ideia, aliás, que se baseia toda a doutrina liberal da liberdade de imprensa. É a esta ideia que devemos uma imprensa livre, é a esta ideia que devemos, em última análise, a invenção democrática e a sua concretização substantiva.
E é por me rever nesta ideia que defendo, sem qualquer pejo, uma liberdade absoluta para a linguagem. Um espaço de radical liberdade onde o combate contra as ideias insidiosas, os preconceitos e os conservadorismos bacocos se faz em campo aberto e à luz do dia.
Parafraseando Jefferson, se eu tivesse de escolher um mundo de censores sem insultos ou um mundo de insultos sem censores, eu não vacilaria um instante em preferir o último. Prefiro, sem sombra para qualquer dúvida, ser exposto a ideias e a palavras ofensivas e pre-conceituosas permanecendo livre para rebatê-las do que ser obrigado a prescindir da minha liberdade para ser defendido pelo poder sem freios de censores iluminados.
Mas isso sou eu, que desconfio de puros e de virtuosos sem mácula.
(Artigo publicado na VISÃO 1320, de 21 de junho de 2018)