Recebo muitas mensagens (até cartas escritas à mão, com cores e desenhinhos) de pessoas mais novas, com uma enorme ambição de seguir uma carreira profissional na música. Pedem-me conselhos de como chegar ao ponto em que se tem uma carreira, perguntam-me como é que se singra nesta engrenagem. Eu nunca respondo, porque não saberia responder a nada daquilo que me perguntam. Quem sou eu para me armar em mestre pedagogo. Mas também me parece um bocado indelicado nem sequer tentar, por isso cá vai. Para começar, não sou eu que tenho uma carreira.
São as minhas músicas. Eu não sou conhecido nem famoso, algumas das minhas músicas é que são. Não sou eu que sou o artista, as minhas músicas é que são. A minha música conheceu adesão popular ao longo dos anos, mas foi ela, não fui eu. Foram as músicas que eu escrevi, que eu compus, que eu inventei, que eu descobri, sei lá dizer. Às vezes parece que se descobre uma música, no sentido em que se destapa, tira-se-lhe o que quer que fosse que a cobria, que a encobria. Quase sempre é assim, é a música que aparece, que pousa, não se pode andar demasiado atrás. Nem das músicas, nem da carreira, da tal carreira, da tal profissionalização. Antes de tudo tem que não se querer, propriamente. Quando muito há que aceitar e não necessariamente desejar, ambicionar. Porque senão o que se ambiciona não é senão uma fantasia. Querer ser seja o que for? Como assim? Não se trata de o que é que nós queremos da vida, trata-se de o que é que a vida quer de nós.
A minha, ao que parece, quis-me a fazer músicas. Porque logo aos 11 anos comecei a tentar obcecadamente, não sei porquê. Mas sei que, fosse qual fosse a razão, a motivação, foram as músicas em si que me puxaram, sempre foram as músicas, e nunca a ideia de um dia me tornar alguém que faz músicas. Qualquer coisa nesta mistura intrigante de palavras com melodia, harmonia e ritmo prendeu-me e agarrou-me pelo cachaço, até hoje. Perdi horas, noites inteiras, a tentar, tentar, tentar e deitar fora. A aprender, sem qualquer sacrifício, mas com toda a dedicação que a alma humana permite, a aprender as músicas todas à face da Terra. As que eu gostava. A tentar perceber a lógica dos acordes, a memorizar progressões harmónicas, pelos vistos a ganhar mão, a ganhar bagagem para o dia em que foi preciso eu saber alguma coisa desse artesanato. Nunca (jamais) com o fito, a determinação, a ambição de ter uma carreira, cantar nos palcos. Antes pelo contrário. Essa ideia era-me, aliás, altamente aflitiva. Comigo foi assim que aconteceu. Era capaz de tudo para conseguir fazer uma música. Plantei-me esfomeado à porta da Torre da Canção do Leonard Cohen (de quem não sou particular apreciador) e só descansei quando o Hank Williams me atirou uma côdea roída lá de cima.
As primeiras mil músicas que fiz foram para o lixo. É como dizia o pintor desesperado por encontrar um certo tom de carmim: “I would kill to get crimson on this pallet knife”. Depois chega-se a um ponto em que se percebe que é tão difícil (tão impossível) que se dá a derradeira iluminação: só dá se for fácil. Dizia o Fernando Pessoa: “Põe o máximo de ti no mínimo que fazes”. Concordo, tem que se estar inteiro e pleno a lavar um prato. Mas também me parece ser bom conselho o seu corolário inverso: “Põe o mínimo de ti no máximo que fazes”. Há que deixar que as mais altas ideias surjam por elas próprias, que sejam o que elas quiserem, e que a gente não se lhes meta muito no caminho. Dizia-me uma miúda no outro dia que precisava de música. Aconselho-a a indagar no fundo da sua alma se o inverso também se verificará. Se assim for, que não se preocupe: a música há de lhe exigir tudo.
(Crónica publicada na VISÃO 1289 de 16 de novembro)