A eutanásia em sentido restrito ou o suicídio a pedido resultam exclusivamente da decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde. Não se trata assim de um “homicídio”, como alguns dizem por aí. Ninguém pretende revogar os artigos do Código Penal que preveem o “homicídio a pedido da vítima” ou o “incitamento ou ajuda ao suicídio”. Se o fizéssemos, qualquer pessoa poderia matar outra ou ajudar outra a morrer a simples pedido. A proteção penal da vida, exigida constitucionalmente, seria totalmente descaracterizada. Seria uma “descriminalização”. Ora, o que se pretende é uma “despenalização”, isto é, os crimes referidos continuam previstos, mas uma lei geral aprovada pelo Parlamento criará aquilo a que chamamos de “causa de justificação” – uma situação em que se justifica a não punição do comportamento. Essa situação é precisamente a que descrevi no início.
Há uma compatibilização entre o valor da vida – e os deveres de proteção do mesmo por parte do Estado – e o valor da autonomia pessoal. Nenhum deles é absolutizado, como não pode ser, em pleno século XXI, num Estado de direito que já não é paternalista, que já não desconfia da capacidade de cada pessoa tomar as suas decisões vitais de acordo com os seus próprios valores, que não impõe a ninguém uma conceção moral, ainda que maioritária e que, portanto, com as devidas cautelas, tem de ter por decisão vital aquela que cada uma e que cada um toma, consciente, livre e reiteradamente no momento em que a vida é um prolongamento (para si) indigno, inútil, uma prisão forçada no próprio corpo.
Outro mito que vejo ser levantado é o da defesa (em contraposição à morte assistida) dos cuidados paliativos, do testamento vital e da luta contra a obstinação terapêutica.
Com o devido respeito, é batota. A defesa da morte assistida não é uma luta contra nenhuma das três realidades referidas. É uma luta pela dignidade de uma realidade autónoma. Se os cuidados paliativos chegassem a todas as pessoas, se todas as pessoas fizessem testamento vital, se os casos cada vez mais raros (que agora alguns querem fingir parecer que são muitos) de obstinação terapêutica desaparecessem, a morte assistida continuaria a ser um direito de consagração necessária e urgente. Os cuidados paliativos não resolvem todas as situações que se enquadram no conceito acima referido, o testamento vital é feito para decidirmos o que queremos que nos façam ou que nos não façam se estivermos inconscientes, quando na morte assistida o pedido é feito conscientemente, e o fim da má prática da obstinação terapêutica não eliminaria as situações em que pessoas estão com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável.
Outro mito que circula por aí é o de que a Assembleia da República não tem legitimidade para legislar sobre a morte assistida porque a mesma não consta de nenhum programa eleitoral e porque sendo uma matéria tão sensível deveria ser referendada. Para além de ser mentira que não conste de nenhum programa eleitoral, gostaria muito que após quase quarenta e um anos da aprovação da Constituição que consagrou a democracia representativa estes argumentos totalitários deixassem de ter escola. A Assembleia da República é soberana para legislar sobre todas as matérias da sua competência, particularmente sobre direitos fundamentais, por natureza avessos a referendos. Os direitos, como a história dos mesmos demonstra, instituem-se independentemente da moral dominante, ou não teríamos tido, quando tivemos, por exemplo, o fim da proibição do casamento inter-racial ou o sufrágio feminino.
Finalmente, ao contrário dos meus opositores, eu não quero impor um modelo de sociedade a ninguém. A Constituição não me permite tal ousadia. Eu quero que cada um e cada uma viva de acordo com o que acredita, porque aquilo que defendo é um direito devidamente limitado para acautelar os riscos conhecidos. Não é um dever.
(Artigo publicado na VISÃO 1252 de 2 de março de 2017)