O Zé Cardoso Pires e eu, como falávamos todos os dias, falávamos de muitas coisas. Talvez o assunto de que falássemos menos fosse a literatura que era, no fim de contas, a grande razão de ser de ambos. Podíamos conversar de escrita e de escritores, às vezes, algumas ocasiões de acordo, algumas em completo desacordo, mas nunca nenhum de nós tentava convencer o outro e nunca discutimos. Que me lembre, em tantos anos, nunca nos zangámos, nunca amuámos, nunca ficámos sentidos. De qualquer modo ele tinha vivido muito mais do que eu e conhecia muito mais gente, gostava de conversar e eu não falava, não falo assim muito. Disse que nunca nos zangámos mas, às vezes, um de nós ralhava e aquele que ouvia o ralhete não abria o bico. E no fim, claro, tudo continuava como antes. Como conhecia muito mais gente e era bastante mais sociável trazia às vezes nomes que na altura nada me diziam. Um daqueles que mencionava de tempos a tempos, com uma ternura e uma estima pouco frequentes em si era o de Miguel Veiga, que eu não tinha ideia de quem fosse. Até que um dia lhe perguntei
– Quem é esse Miguel Veiga?
e ele respondeu com uma convicção profunda
– É o homem mais livre que conheço.
Como este tipo de comentário não era comum fiquei surpreendido a olhá-lo. E o Zé, que não era criatura de grandes elogios, repetiu com uma convicção absoluta
– É o homem mais livre que conheço
e claro que fiquei, eu que não sou especialmente curioso, com vontade de conhecer uma pessoa dessas, para mais sabendo que a palavra liberdade era demasiado importante na boca do Zé e, portanto, raramente usada. O Zé foi um caramelo de grande pudor e elogio raro. O homem mais livre que conheço, por exemplo, jamais lho tinha ouvido. Passados tempos, não me recordo onde nem em que condições, conheci Miguel Veiga. E não só acreditei no que o Zé disse
(jamais o ouvi mentir)
como o achei, de imediato, o homem mais livre que eu tinha encontrado. E ficámos instantaneamente amigos. O Miguel era, para começar, absolutamente irresistível, com um charme único e um extraordinário sentido de humor. Depois era inteligente. Depois era terno. Depois era irónico. Depois era de uma generosidade sem limites. Depois possuía carácter. Depois era bondoso. Depois era firme nas suas convicções. Depois era inabalavelmente fiel nas suas amizades. Teve para comigo gestos de uma extraordinária delicadeza, para além de uma elegância extrema. Foi, decerto, dos homens mais elegantes que conheci, elegância temperada por um humor subtilíssimo. Dizia o que pensava fosse diante de quem fosse, com uma firme serenidade e, quando gostava de alguém, com um afecto que desarmava por completo o seu interlocutor. Uma tarde estávamos no Porto, com muito frio, ele percebeu que eu tinha frio e surgiu com um cachecol caríssimo, que comprou não sei onde, para me aconchegar o pescoço. Censurei-o
– Oh Miguel
e ele respondeu-me com uma palmadinha carinhosa nas costas. Estou assim a falar de coisas de que me lembro, um pouco ao acaso, mas não faz mal. Por exemplo de estarmos na sua casa e eu a olhar para a enorme biblioteca. Disse-lhe
– Parece que tens cada vez mais livros
e o Miguel parou a olhá-los, numa expressão sinceramente surpreendida. Acabou por me responder
– Pois é, que esquisito, se calhar estão a reproduzir-se entre eles.
Não se limitava a ter os livros, lia-os. E escreveu alguns, que me chegavam com dedicatórias cheias de amizade, como me chegavam T-shirts do Brasil com uma mensagem do género “já que não posso mandar-te uma destas brasileiras, tão oferecidas…” Um dos pacotes de T-shirts foi, não sei porquê, para a casa da minha mãe que, quando me viu abrir o pacote me olhou com um ar desconfiado. Ela
– Quem te mandou isso?
Eu
– Um amigo
ela, a medir-me bem
– Mudaste de gostos por acaso?
e levou uns bons cinco minutos a certificar-se que não, com a fama de mulherengo do Miguel a ajudar-me. Não sei muito bem o que é ser mulherengo. Quando eu estava a dar autógrafos sentava-se ao meu lado e pedia o telemóvel a cada mulher bonita que aparecia para uma dedicatória, mas não sei se pode considerar- -se mulherengo um homem que faz isto. No seu caso parecia-me mais uma homenagem à beleza do que qualquer outra coisa, as mulheres que, como dizia Vinicius, são a coisa mais bela de toda a criação inumerável. E o Miguel amava as coisas belas: livros, pintura, escultura, o que quer que fosse. Como não ser sensível às mulheres? Já doente, com dificuldade em andar, foi a Penafiel a uma homenagem que me fizeram por lá. Foi uma das últimas vezes que nos abraçámos e pareceu-me que os olhos dele se encheram de lágrimas. O seu amor à vida e a sua extrema sensibilidade comoveram-me imenso. E o Miguel ajudou-me a compreender melhor o significado da palavra amizade. Miguel, meu amigo, por favor não voltes a morrer: não seria lá muito elegante, pois não?