As pessoas não morrem: tornam-se personagens de ficção, do mesmo modo que envelhecer é começar a ter corpo. Sempre me surpreenderam aqueles que já cá não estão: mudam tanto, e continuam a mudar conforme os anos passam. De maneira geral ficam mais agradáveis, com muito menos defeitos, passam de chatos a bonzinhos, tolerantes, simpáticos, sorrimos para ninguém ao lembrarmo-nos deles, cessamos de dizer
– Não gosto desse
substituído por
– Era uma pessoa com um feitio especial
quando, em vida, os achávamos uns estafermos, os maus então melhoram imenso
– Tinha lá as suas manias, coitado, mas no fundo era um paz de alma
o meu pai, por exemplo, autoritário e egoísta, virou até se quedar apenas um sujeito exigente ou, como afirmava a minha mãe
– Uma personalidade muito forte
comentário estendido, como um manto, sobre uma criatura caprichosa
(custa-me escrever isto mas é verdade)
que só fazia o que lhe dava na gana, indiferente aos outros
(desculpe pai, aguente-se)
com algumas qualidades notáveis no meio de uma imensa insegurança que o levava a não tolerar que o contrariassem
(ao pôr isto aqui, dou-me conta que o meu ressentimento em relação a ele permanece intacto)
com ciúmes dos filhos
(no que respeita ao João, por exemplo, era óbvio, quando voltei de Nova Iorque, onde estive com o meu irmão numa altura difícil da sua vida, declarou-me
– O João é um fraco
respondi-lhe, lembro-me tão bem
– Não só não é fraco como conseguiu tudo o que o pai não conseguiu e tem inveja de ele ser mais inteligente
o meu pai levantou-se de um salto da cadeira
– Sai daqui
respondi-lhe
– Com todo o prazer
e durante meses não me pôs a vista em cima)
violento para o Nuno
– Vai lavar os membros anteriores
violento para mim, violência que diminuiu a partir da manhã em que me veio acordar porque eu estava atrasado para a Faculdade e lhe perguntei
– Quis assistir ao acordar de um génio?
e, depois, orgulhoso quando comecei a publicar livros embora nunca me houvesse transmitido qualquer opinião acerca disso. O Pedro contou-me que o pai
– O António tem faísca, o António tem faísca
mostrando-lhe o Fado Alexandrino
– Isto há-de ficar
o Pedro, que não invejava fosse quem fosse, respondia sempre
– Sim pai
respondia sempre
– Sim mãe
e fez toda a vida o que lhe apeteceu
(o homem mais livre que conheci, esse meu mano)
com uma discrição inabalável e tranquila que desarmava toda a gente, tornava impossível não se gostar dele e só não se transformou, ao morrer, numa personagem de ficção porque, de algum modo, sempre o foi. O que pus aqui acerca do meu pai não anula, evidentemente, os seus méritos e, sob vários aspectos, foi muito importante para nós. É terrível não ser permitido escolher a família em que se nasce e eu orgulho-me da minha. Se nascesse noutra se calhar orgulhava-me também, sei lá. Mas acho que tive sorte com a alcateia que me saiu na rifa, sorte com as minhas personagens de ficção, sorte com os vivos. Penso que não sou tão intolerante como o meu pai: apenas não suporto que toquem num só cabelo das pessoas do meu sangue ou dos meus amigos. E, agora que cada vez tenho mais corpo
(as costas, os intestinos, os dentes, Emerson garantia que o bom da morte é que já não era preciso ir ao dentista)
e que, daqui a nada, serei uma personagem de ficção também
(seremos todos, daqui a nada, personagens de ficção, é tão rápida a vida, tão breve)
vou aprendendo, julgo, a lidar melhor com a parte da minha família que se transformou em retratos e existe apenas atrás de quadrados de vidro, geralmente a sorrirem, congelados de satisfação a preto e branco. Se os chamasse
– Vocês
quase penso que me respondiam e às vezes imagino que, se me afasto, conversam uns com os outros, às escondidas, de assuntos antigos que envelheceram mais que as suas caras, e pergunto-me o que cochicharão acerca de mim. Normalmente os comentários eram
– Porque é que ele tem um temperamento tão complicado?
ou
– Onde é que foste buscar isso, pequeno?
e sei lá onde é que fui buscar o que quer fosse. Aliás nunca fui buscar nada: sempre achei que era a vida quem vinha ter comigo, não eu que me deslocava ao seu encontro. E que tudo o que me acontecia eram milagres. Portanto se por acaso encontrarem uma azinheira não olhem para ela, não vá eu estar poisado lá em cima
(os tais pássaros quase mortais da alma de que falava Rilke, poeta que não aprecio assim muito)
a pedir que vocês, os pastorinhos, rezem pela conversão da Rússia comunista.