Ontem jantei com o João e o Miguel e, como sempre que estou com irmãos meus, veio-me todo o passado à cabeça: a infância, a adolescência, a nossa vida até hoje. A casa onde fomos feitos e na qual crescemos é velha, anterior ao terramoto porque numa das tábuas do soalho estava gravado a data de 1712, com um jardim à volta, duas árvores grandes, grandes, de um lado um caramanchão com uma mesa de ferro com um tampo de pedra muito grosso, a cascata com um peixe, de pedra também, e a boca aberta de onde saía a água, muito bonita, já meio destruída, o outro lado com o poço que a minha mãe mandou tapar no medo que caíssemos lá dentro, os tanques enormes, de pedra igualmente
(tanta pedra!)
a figueira grande onde eu queimava, desde os treze ou catorze anos, até de lá sair, tudo aquilo que ia escrevendo
(passava grande parte do tempo a escrever e depois ia para junto da figueira rasgar e queimar, furioso com os pobres resultados dos meus esforços)
as janelas no muro, com bancos
(de pedra, claro)
para a Travessa do Vintém das Escolas e, dentro da casa, portas com vidros em cima, janelas que se trancavam com fechos de ferro, as patas de leão da banheira num compartimento com três janelas, onde fumava às escondidas cigarros que roubava à minha mãe e, a propósito de cigarros, uma das primeiras lembranças que tenho do João, ele com três anos, mais ou menos, eu com cinco, aconteceu quando a nossa mãe lhe pediu que fosse buscar os tais cigarros a um outro compartimento, o João negou-se a ir com a justificação de que estava escuro e tinha medo, a minha mãe explicou que o escuro não assusta ninguém ou uma coisa assim parecida, e o João rematou o assunto declarando-lhe
– Se não tem medo do curo vá lá você
frase que me vem à ideia sempre que acendo uma luz, como me vem à ideia o Pedro a queixar-se do João e de mim ao pai, que estava a barbear-se no tal quarto de banho da tina com garras, dizendo que o João e eu lhe tínhamos tirado não sei o quê, o pai, a pensar noutra coisa, respondeu
– Ah
e o Pedro veio ter connosco, triunfal
– João, o pai disse Ah
recuperando o não sei o quê e indo-se embora com ele, comigo e o João vencido pelo
– Ah
que, pelo menos eu, já não entendo o que significa e, por já não entender o que significa, tenho vontade de perguntar ao João
– O que quer dizer Ah?
na esperança que me explique. Um dia destes pergunto mesmo, estou a falar a sério e, se ele me elucidar, digo logo
– Bem me parecia
a fim de que o meu irmão não pense que sou burro, ele que tem menos vinte ou vinte e um meses do que eu e, por conseguinte, chegou muito mais tarde ao conhecimento das coisas. De qualquer maneira durante o jantar nenhum de nós gritou
– Ah
nem
– Cocó chichi rabo ao léu
que era um insulto fortíssimo, reservado para ocasiões muito graves de discussões acerca de rebuçados, automóveis de brincar ou outros assuntos vitais. Mas
– Cocó chichi rabo ao léu
não foi necessário utilizar no jantar, graças a Deus, penso que pelo facto de não existir nenhum cartucho de rebuçados à vista. Portanto os meus irmãos falaram pacificamente e eu, como costume, permaneci calado, umas vezes ali, a maior parte do tempo longe, sentado no chão com dois meninos loiros e de olhos azuis, ou seja três meninos loiros e de olhos azuis, não três homens, que ideia mais parva, qual homens, num tempo em que ninguém tinha morrido, ninguém ia morrer, quem morre são as formigas e as lagartixas, não nós evidentemente, não nós, nós temos sonhos em que se dá um pulito e voamos, se por acaso a morte se aproximasse voávamos logo para longe e pronto, para além de só atribuirmos importância aos olhos azuis muito mais tarde, quando uma professora do Nuno respondeu à nossa mãe
– Como é que eu podia dar uma negativa àqueles olhos azuis?
que me salvaram, de certeza, de muitas maçadas ao longo da vida e, a partir da adolescência, contribuíram para algumas complicações
(eu cá me entendo)
com raparigas. Adiante. Portanto ontem jantei com o João e o Miguel. Escutava-os falarem sem perceber o que diziam
(os meus irmãos acham que eu vivo noutro mundo o que até é natural, há tantos)
porque estava com eles em Benfica, ora com eles ora sozinho, e numa das ocasiões em que sozinho vi a cozinheira, de cócoras, a urinar num canteiro. Nessa época já era suficientemente maduro para saber que os meninos fazem por um tubinho e as meninas por um buraquinho, mas a empregada era outra loiça. Andei séculos a ralar-me com aquilo, intrigadíssimo, sem coragem de esclarecer o mistério. Nós adorávamos a tia Madalena, que passava a vida a ler, casada com o tio Eloi que, quando alguma coisa o espantava, tinha sempre o mesmo comentário
– Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim
ele que não era beleguim
(fui ao dicionário informar-me do que seria beleguim e fiquei na mesma)
era advogado. Portanto fui ter com a tia Madalena, que interrompeu a leitura para olhar para mim quando lhe puxei a manga
– O que foi, filho?
e esvaziei a minha ansiedade
– A tia também faz chichi por uma escova?
A tia Madalena olhou-me com a ternura do costume, perguntou coisas, contei a história da empregada e da escova, ficou suspensa a pensar, acabou por me esclarecer
– Um dia destes falamos nisso
deu-me um beijinho e voltou para o livro. Claro que não falámos nisso mas não teve importância. O que teve importância foi o beijinho, que já cá canta. Passados tantos anos ainda não o perdi.