E a certas horas de certos dias este verso de António Sardinha lido aos catorze ou quinze anos regressa devagar, tinge-me por dentro, fica a tremer em mim como uma gota numa folha que não cai, não cai e eu cheio de vontade de me sentar ao colo de sorrisos que já não existem, de escutar vozes que se calaram para sempre, de sentir mãos que me abandonaram e cheiros que perdi: tanta coisa me deixou já. Dantes quando o mar recuava na praia ficavam sempre prendas para mim: a voz do meu avô, seixos mais lisos que a minha pele, longos braços de algas, dedos que me pegavam devagar na mão, um murmúrio de felicidade secreta, os saltos das minhas tias no corredor pronunciando o meu nome
– António
o senhor José no jardim a dar vida a uma flor que quase sem lhe tocar desenhava com as palmas. Dedos, dedos, tão importantes os dedos, dedos com olhos por cima que compreendiam tudo, perdoavam tudo, me alcançavam no mais fundo de mim, prometiam ficar para sempre comigo e se foram embora. Um dia destes vou-me embora também, na esperança de encontrá-los mas como sou homem não tenho a delicadeza nem a capacidade de decifrar mistérios que as mulheres entendem sem palavras, encontram sem procurar, conhecem a linguagem do silêncio, relacionam-se com o por dentro das coisas, explicam-nos, com um bater de pálpebras, o segredo do mundo, conseguem deitar-se dentro da própria alma e adormecer acordadas. Quem é capaz, senão elas, de tocar naquilo que está próximo? Quem consegue, senão elas, descerrar-se lentamente? Sou tão novo ainda, serei sempre tão novo que tropeço nos meus próprios pés por não me pertencerem por enquanto, vão esperando que eu cresça e não cresço, que oiça e não oiço, que encontre as palavras em forma de chave capazes de abrirem o coração do coração. Uma luzinha. Só precisava de uma luzinha para caminhar até ao fundo do corredor onde estou sentado no tapete, de joelhos na boca, à minha espera, aguardando que me diga
– Olá, António
e sentando-me ao meu lado. Poisar no meu próprio ombro, falar comigo mesmo. Devagar. Em segredo. De maneira a que só eu me oiça porque, se eu me ouvir, me ouvem à medida que vou tirando, pétala a pétala, tudo o que esconde o coração do mundo.
– Olá, António
mas que difícil repetir
– Olá, António
e acordar tudo o que em mim não é carne, é vento, é água, é um pequenino bicho medroso escondido de si mesmo no interior da sua sombra. António Sardinha: chuva da tarde, melodia mansa, desejos vagos de chorar baixinho. O meu pai acerca de mim:
– O meu rapaz
e eu tão contente de ser o seu rapaz, continuo a ser, sabia? Apesar deste mês de março, o mais horrível de todos, o que mais dor me trouxe. Aquele que provavelmente me levará consigo para um fundo de gaveta onde me juntarei às restantes fotografias. Uma fotografia que outras virão esconder e eu, lá em baixo, sem conseguir respirar porque me tapam a boca, me amordaçam, me calam:
– Quem é aquele?
e não me reconhecem conforme não me reconheço: um parente, um estranho, alguém que está ali por engano. Que viveu por engano. Que passou pelo meio de nós por engano.
– Explique-lhes que sou o seu rapaz, pai
e ele, sem me reconhecer
– Não estou a distinguir bem, tive tantos filhos
e depois a casa já não existe, nem a acácia, nem a buganvília. Nem a mesa de tampo de pedra sob o caramanchão. Não existe nada senão sombras. E, um dia destes, um longo inverno.
– Quando a gente menos espere vem aí um longo inverno.
E vem. Dizem-me
– Põe o cachecol, miúdo
E saio a porta do jardim e começo a caminhar. Para onde? Tanto faz, palavra de honra que tanto faz. Se olhar por cima do ombro que vejo eu? Vejo o meu rapaz
– O meu rapaz
ao longe, certo de o perder na primeira esquina. Dirige- -se aonde? Não parou na capelista, não parou na montra da loja de roupa, não ficou a olhar o homem estátua coberto de tinta prateada nem o aleijado que pede esmola sob um toldo. Talvez sobeje alguma coisa dele na gaveta dos retratos, um corpo, uma cara, uma espécie de espanto. Cabelos desarrumados pelo vento. A roupa a que falta um botão
– Tão distraído sempre
o calo de escrever no médio. As cicatrizes do corpo, as outras que se não vêem. Ou talvez não sobre seja o que for salvo um pedaço de muro, um resto de trepadeira, a parte de trás do jardim, com a figueira e aqueles tanques muito grandes, de pedra muito antiga, para onde atirava, da janela do quarto, as folhas rasgadas de tudo o que escrevia, que depois queimava na figueira em sucessivos autos da fé. Tantos anos assim! Fica o desejo vago de chorar baixinho. Esse demora-se-me na memória a tremer como uma folha que não cai, que não cai, sentado ao colo de sorrisos que já não existem. Não existirão? Senti agora mesmo um deles na minha boca.