Tenho saudades de ouvir os saltos da minha mãe à noite, no escuro, quando já estava deitado, afugentando os meus medos e os bichos informes e terríveis que tentavam aproveitar-se de eu estar sozinho para me fazerem mal, não sabia bem como mas fazerem-me mal, por exemplo arrancarem o meu corpo minúsculo da cama e levarem-no com eles, em silêncio, atravessando o chão
(toda a gente sabe que é facílimo atravessar o chão)
para as cavernas que as casas têm por baixo e que nunca visitei mas conheço
(que criança não conhece?)
enormes, escuras, cheias de bichos de dentes afiados e olhos com claridade amarela, repetindo constantemente
– Vamos comer-te, vamos comer-te
e a gente no meio deles na companhia de baratas, brinquedos partidos e um primo do meu pai que me fazia cócegas se me apanhava a jeito
(apanhava-me sempre a jeito)
comigo a torcer-me para um lado e para o outro, rindo sem vontade nenhuma, a tentar escapar-lhe sem ser capaz de escapar, odiando-o em gargalhadas doridas, repletas de lágrimas e fúria, até o primo me largar por fim com uma festa na cabeça
– Estás um homem
enquanto a minha mãe lhe pendurava o sobretudo no bengaleiro, desinteressado de mim até à próxima visita. Acho que ainda hoje esse primo, morto há séculos, continua a aterrorizar-me e não compreendo o motivo de nunca ninguém me haver salvo daquele suplício: todos ficavam a assistir, os idiotas, com sorrisos compreensivos e cúmplices. Cócegas na barriga, cócegas debaixo dos braços, cócegas apertando-me as pernas acima do joelho enquanto eu pontapeava o ar, sem ser capaz de salvar-me: acho que ainda hoje, se o apanhasse, o matava com prazer com uma pistola de fulminantes que é, como qual pessoa está a par, a arma mais letal do mundo, ou fazia-lhe cócegas até ele agonizar no tapete, a gemer cada vez mais sumido
– Por favor não me mates, por favor não me mates
expirando numa última gargalhada de boneco de corda. As cavernas que as casas têm por baixo estão de certeza cheias desse primo atroz também e fazia-me espécie os saltos da minha mãe nunca o haverem expulso: iam, vinham, não se ralavam comigo. Ninguém da família, aliás, se ralava comigo durante essas eternidades de pavor, de maneira que me escondia na cozinha, tentando caber atrás do fogão ou no interior da copa onde estavam as vassouras e os pacotes de arroz, para além dos biscoitos e dos frascos de compota, prudentemente enfiados em prateleiras altas às quais eu não podia chegar. Chegava às latas de atum e à garrafa do vinagre que não me atraíam nada, chegava a grades de vinho e a pacotes de farinha, ao pimenteiro, a velas de aniversário embrulhadas num plástico, inutilidades assim. Então, invariavelmente, apareciam os saltos
– O que estás aqui a fazer?
mandando-me de volta à sala depois de me tirarem o martelo
– Para que queres isto, tu?
que eu transportava para me proteger do primo torcionário que me garantia
– Estás um homem
de perna cruzada no sofá, com um pedaço de pele cor de rosa entre a meia e a calça que me apetecia arrancar com uma dentada, e portanto sentava-me no tapete enquanto ele repetia
– Estás um homem
colocado de propósito perto da pele rosada, afiando mentalmente os caninos, pronto a pular de súbito sobre ele respondendo num bramido – Pois estou
e abocanhando-o com toda a força do mundo. Pensei em pedir ao meu irmão Pedro, muito mais competente em dentadas do que eu, para me auxiliar, mas como ele estava ocupado a tirar macacos do nariz e a colá-los por baixo do tampo de uma mesa, trabalho mais importante do que arrancar pedaços à família, vi-me sozinho nesse lance. Lá me fui aproximando devagarinho, devagarinho, como os linces nos filmes, agora esta pata, agora aquela, numa lentidão cautelosa e feroz, enquanto o primo, distraído de mim, explicava coisas incompreensíveis a um tio meu, com palavras como hidráulico e excesso de pressão, o meu tio acenava que sim, perfeitamente a par desses mistérios, até que eu já pertinho da pele cor de rosa, já de lábios arregaçados, já de unhas compridíssimas, quando a empregada aparecia a empurrar um carrinho de duas prateleiras, com um bule de chá, o açucareiro e, sobretudo, um bolo de laranja enorme, que era a coisa que eu mais gostava neste mundo, e então as minhas mandíbulas principiavam a hesitar entre a pele e o bolo, a pele à minha direita, o bolo à minha esquerda, os saltos da minha mãe paravam numa cadeira perto e, no momento em que o seu barulho cessava o meu berro
– Vou comê-lo, primo
tirando, com as patas tremendas, o bolo do carrinho, sumindo-me com ele no jardim, atrás de uns arbustos, mirando em torno com olhos sangrentos, e principiando, canibalmente, a devorá-lo. Podem não acreditar mas sabia a carne humana, a carne humana do primo do meu pai que, por sua vez, sabia a bolo de laranja de forma que aconselho o leitor a, em circunstância alguma, se aproximar de mim, a menos que tenha dinheiro para um par de muletas.