O dedo a apontar o céu de Samora Machel na praça da Independência, pesa-me. Parece que me avisa que estou em falta. Há quatro meses que não escrevo nada sobre a Beira, Moçambique. Agora que estou a um mês de partir, a praça, por onde passo todos os dias, consome-me já de saudades.
“– Estou? Richard? És um roubalhão! Estás a cobrar-nos o dobro do preço cobrado pelos outros chopelas, pensas que não sei?! Olha, peço para me vires buscar à praça para irmos ao Afonso.”
A técnica com o Afonso é pedir os camarões, as lulas, o peixe, a xima, as batatas fritas (caseiras e omnipresentes na Beira, as melhores do mundo), mais os ovos e os legumes cozidos com duas horas de avanço. E mesmo assim é a garantia de ainda esperar na barraca do Afonso nas cadeiras e mesa de plástico, à sombra do farol, por mais umas duas horas. A noção do tempo é de facto relativa.
As dores de corpo têm adiado a subida ao farol. Planeei voltar a subir, mais de um ano e meio depois da primeira vez, na altura de férias, e verificar se o Osmani ainda por lá trabalha.
“O farol de Macúti de 1904 pintado de vermelho e branco frescos empresta vista privilegiada sobre a cidade. Enquanto Maria sobe os 101 degraus, Osmani, vigilante, fala dos pais nascidos na Tanzânia, país que só conhece de postal, do farol automático, de um resort de chineses a uns quilómetros dali e dos defuntos hotéis Estoril e Dom Carlos, cujas carcaças estão abandonadas logo aí na entrada da praia. “Não há vista como esta”, afirma com orgulho do topo do farol o dono daquele pedaço de céu. “Tenham cuidado, anda por aí muita gente maldosa, só confiem nas pessoas boas”, diz Osmani às três irmãs, enquanto refere emocionado que nasceu no mesmo ano em que Maria pisou a Beira pela primeira vez.” (https://visao.sapo.pt/nos-la-fora/2018-04-10-Anita-em-Mocambique)
Em frente, jaz o antigo Complexo Turístico do Macuti – Motel Estoril e Hotel Dom Carlos. O nosso chefe, perde-se em memórias de quando lá passou umas noites, nos anos 80, em plena guerra civil, onde já não havia luz e nem água a servir o Dom Carlos. Das janelas e das portas já nem sinal, mas os azulejos da entrada e os adornos na recepção, ainda tentam resgatar histórias perdidas no passado.
As dores de músculos e dos ossos devem ser culpa do ginásio do Clube Náutico, ainda todo desventrado pelo ciclone Idai. Mas também para que é preciso janelas e tecto para treinar? Instalada quase em cima do mar, a estrutura já não bloqueia o vento e os mosquitos entram sem medos, acabando por trazer alguma dinâmica acrescida aos já agitados treinos.
“No Clube Náutico, a surpresa de dar de caras e conhecer Mia Couto, a comemorar 35 anos de carreira na terra onde nasceu e cresceu. Precisamente um dos autores preferidos de Maria e das duas irmãs, todas Marias.“( https://visao.sapo.pt/nos-la-fora/2018-04-10-Anita-em-Mocambique)
De volta à praça, onde a maresia e a ventania, e tantos outros elementos externos não impedem largas dezenas de pessoas de se juntarem diariamente e fazer todo o tipo de exercícios à volta e em cima da rotunda. No dia da cidade, a rotunda é palco de uma competição de carros de corrida à séria. Vindos de propósito de fora, estes limitam-se a rodar a todo o gás à volta da rotunda, em círculos estonteados e empoeirados para delírio dos espectadores empoleirados em cima de muros e árvores.
As tremuras são tantas que até doem os ossos e o corpo com tantos tremeliques. Será frio? Mas nem água a ferver pelo corpo abaixo faz apaziguar o movimento. O que vale é que passa logo. A tempo de sair outra vez.
“– Ouviste, Richard? És um roubalhão! Podes voltar a pegar-me às 7 horas?”
“ – ’tá nice!”
Hoje vou pela marginal para o lado contrário do sentido do farol. Vou ver que é feito do Grande Hotel, onde milhares de pessoas já não tinham muito mais a perder quando enfrentaram o ciclone Idai há 7 meses. Sigo depois até junto do porto, muito próximo da estação.
“A estação de caminhos-de-ferro de 1966, marca do modernismo, e o Grande Hotel, inspirado na art déco, ambos dignos do roteiro arquitectónico da Beira, tiveram destinos distintos. A primeira, foi ponto de ligação entre o interior de África, sem acesso ao mar, e o porto da Beira. Hoje, a estação perdeu esse papel (mas não a graça), mas ainda é ponto de partida e destino de vários comboios. O segundo, inaugurado em 1955 com o rótulo de maior e mais luxuoso hotel de África, esteve aberto menos de uma década. Serviu depois de base militar durante a guerra civil e a cave foi transformada em prisão. Actualmente, milhares de pessoas vivem (mal) no que resta do Grande Hotel.” (https://visao.sapo.pt/nos-la-fora/2018-04-10-Anita-em-Mocambique)
Nem as náuseas e os vómitos podem impedir o passeio pela cidade ao fim de semana, agora que já temos algumas folgas na resposta à emergência. Os telhados carcomidos ou a falta deles ainda são uma realidade, para não falar das necessidades de muitos milhares de pessoas na província que ainda tentam recomeçar a vida. Pelo contrário, a minha febre, apesar de ter chegado em altos graus, foi-se rápido. O que não passa é a vontade de tentar fazer mais pela reconstrução da província de Sofala. A vontade de voltar a voltar.
“O Manuel, o nosso pai, não viveu para voltar, mas a Maria (Estela), a nossa mãe, regressou a Moçambique 40 anos depois de ter partido. E gostou muito do que viu. Nós também.” (https://visao.sapo.pt/nos-la-fora/2018-04-10-Anita-em-Mocambique)
Depois do teste positivo, não pude evitar pensar com um sorriso nos lábios sobre um ditado que tenho lido gravado nos souvenirs à venda nos aeroportos desta zona do mundo:
“Se te achas muito pequena para fazer a diferença, tenta dormir com um mosquito.” Pior, tenta que ele te infecte com malária.