Depois de ter saido de Portugal em 2004 para a minha primeira experiência internacional, já tive projectos em mais de 25 paises, já vivi e trabalhei em quatro continentes e para muitos dos países em que trabalhei ou vivi, passar várias horas a fio em embaixadas é sempre um massacre existencial e sempre que o visto demorava mais uns dias do que o normal a sair, sempre me irrititava a falta de celeridade. Tudo isto mudou até ir para a República Democrática do Congo. Aquando do processo de visto, cheguei à Embaixada da RDC e quando expliquei o que queria, referi a meio da conversa que queria um visto com taxa de urgência. O funcionário parou de escrever, levantou a cabeça num cinematográfico slow motion e com algum sentimento e peso nas palavras exclamou qualquer coisa semelhante a: “Praticamente todos os europeus chegam às nossas embaixadas com a arrogância de querer o visto de um dia para o outro. Se você parasse um pouco, vi-se o paradigma por outra perspectiva e imaginasse o que é estar do outro lado e o que um africano como eu passa para ter um visto de visita para a Europa, os meses que tem de esperar, aquilo que tem de passar, as contas que tem de apresentar e mesmo sem crimes, mesmo perseguidos por guerras, pela fome ou pela desgraça, quando simplesmente queremos fugir para sobreviver ou dar melhores condições às nossas familias, ter um visto é uma ilusão. E você já se deve ter apercebido de quantos de nós morremos por querer apenas sobreviver num lugar mais próspero do que o sítio onde vivemos, onde todos embandeiram os direitos humanos mas que ao mesmo tempo deixam morrer afogadas as nossas crianças?!”
Naturalmente engoli em seco e expliquei que as minhas razoes eram humanitárias… e que o sentido da viagem era mesmo trabalhar muito para contribuir para acabar com a Cólera e com as doenças Hídricas. Ele compreendeu e depois concordámos numa longa conversa que de facto a maior parte dos recursos de África são explorados e dizimados por empresas europeias, americanas e asiáticas e que a maior parte dos conflitos em África nada têm a ver com etnias, como quase sempre se tenta passar. As Guerras e as maiores desgraças em África são causadas e permitidas com o silêncio dos principais países do mundo e mesmo as Nações Unidas e pelo seu absurdo funcionamento do Conselho de Segurança. (Que tenhamos esperança que o “nosso” Guterres contribua para a inquestionável reforma da ONU).
No Congo por causa dos minérios, que acabam todos nas nossas televisões, nos nossos aviões, nos nossos telemóveis, nos nossos carros, nos preciosos colares ou anéis de diamante, já morreram mais de 6 milhões de pessoas. Alguém já falou em genocídio? Uma das principais razões para a criação das Nações Unidas foi o intuito de nunca mais haver um Holocausto… e no Congo seguimos e vivemo-lo todos os dias. Como é possível? Como pode o mundo continuar em silêncio?
Na Serra Leoa, sobretudo devido à exploração de diamantes e ouro, a guerra civil que durou mais de uma década matou mais de 50 mil pessoas. A violência desta guerra foi impressionante – tendo como um dos maiores símbolos de terror, a imagem da Catana, sendo que ainda hoje, o número de pessoas amputadas nas ruas a pedir esmola, ou o número de pessoas com problemas mentais devido aos traumas que viveram durante a guerra seja impressionante e visivelmente perturbador, ainda que seja importante para não se esquecer o que aconteceu e como nunca será pela vontade líderes prometedores de paraísos, que se voltará à guerra. (imagem similiar a muitas zonas de Beirute onde na baixa e junto ao porto e à corniche, persistem imensas casas e prédios perfuradas com buracos de balas, bazucas e morteiros, que mesmo que tenham passados várias dezenas de anos, se insiste em não apagar, de forma a não esquecer e a nao cair no mesmo erro).
Tenho muita sorte de poder viver o mundo e atravessar fronteiras de forma segura, tenho muita sorte de não ter o meu país em guerra ou de viver em epidemias que me façam ter de fugir. Vivendo deste lado do mundo, entendo em larga escala o desejo de todos esses migrantes (tal como eu, mas de uma classe que o mundo ocidental considera inferior) e que arriscam e morrem sem glória pelas suas familias na busca da paz e de uma vida mais digna. Sem esquecer que um branco em África é um expatriado e um preto na Europa é um imigrante. Porque mesmo na semântica somos fabulosos na discriminação, na minha organização, pedi para remover o título de “Expatriado” e agora só temos staff nacional e internacional.
O Lado B continuará sempre a ser o Lado B. A Turquia, o Paquistão, o Iraque, o Egipto ou a Palestina serão sempre inferiores aos que estão do Lado A. Continuamos a viver numa bolha muito protegida na Europa e continuamos abstraídos pelo consumo de bens e serviços que continuam a suavizar todos os outros paradigmas essenciais. Mas enquanto nós consumimos sem entender que a grande maioria dos bens que compramos são feitos no Lado B do mundo, em que continuamos a ter muito trabalho escravo, onde continuamos a ter imenso trabalho e exploração infantil, seremos sempre os fúteis “Je suis não sei quês” que nunca entenderão que para termos menos conflitos no mundo, tudo o que consumimos deve ser pensado, deve ser reduzido, deve ser racionado. Porque do outro lado há quem continue a morrer para que nós tenhamos os telefones de última geração. Que neste Natal pensemos um pouco mais para além dos trends que nos tentem impingir a seguir.
Nunca entenderemos o que é estar do outro lado enquanto não compreendermos que, no fundo, o outro lado é só mesmo o mesmo lado… a etnocentricidade e o eurocentrismo ainda não deram conta que a terra é uma e é redonda. O meu luto pelo mundo injusto que temos e pelas famílias que todos os dias perdem os seus na fuga por uma vida melhor. E a minha esperança para quem um dia tenhamos a consciência profunda que não há nenhuma vida que valha mais que outras.
VISTO DE FORA
Quantos dias sem ir a Portugal: 78
Nas notícias por aqui: As vendas de várias empresas de extração de diamantes estão em causa devido aos negócios muito duvidáveis entre as empresas Israelitas, Americanas e as suas subsidiárias Serra Leonesas. Enquanto isso, várias manifestações populares justificadas com a falta de cumprimento por parte de uma das empresas israelitas no pagamento de impostos locais e sobre as parcas condições de trabalho, que resultam sempre em muitas mortes anuais.
Sabia que por cá… A população estrangeira a residir aqui é imensa (numa maioria Libaneses que estão estabelecidos na Serra Leoa há duas ou três gerações) nestas alturas da celebração das diversas festas e feriados, há uma entrada de capital em dollars enorme, o que faz descer o valor do preço do dólar. Há uma grande pressão nos bancos e no mercado de rua para a venda de divisas. Se há uns que ganham com a entrada de muitos dólares no mercado, há outros que sofrem para manter os seus negócios rentáveis. Em especial com o incremento de vários pontos na inflação só neste segundo sementre.