Para muitos povos, em diferentes latitudes, o cliente é rei. A qualidade do serviço prestado e a satisfação do consumidor são prioridades absolutas, uma preocupação que nalguns casos chega mesmo a tornar-se obsessiva. Daí, aliás, o adágio popular “o cliente tem sempre razão”.
Pois a Bélgica encontra-se nos antípodas de tal cultura: aqui o cliente nunca tem razão, deve pedir por favor para ser atendido, agradecer a atenção dispensada e desculpar-se por qualquer incómodo causado. Generalizo, claro está. E, ao fazê-lo, cometo graves injustiças. Mas há uma sucessão interminável de episódios que justificam a caricatura.
Por exemplo, certo dia um colega de trabalho contava-me que ia aproveitar a hora de almoço para comprar uma carteira que tinha descoberto na véspera numa determinada loja. Ingénuo, perguntei: mas se viste a carteira ontem e gostaste dela, por que não a compraste logo?
Não a tinha comprado na altura porque, apesar de a loja estar aberta e dentro do horário normal de funcionamento, a respetiva lojista já tinha “fechado a caixa” e não se mostrou disponível para abrir exceções. Portanto, ali estava uma vendedora supostamente com o fito de vender e um comprador com efetiva vontade de comprar. E, no entanto, a transação não se deu. Porquê? Porque àquela hora dava muito trabalho. Não obstante ser horário de expediente! O cliente, se quisesse mesmo muito a carteira, que voltasse no dia seguinte, e com maior antecedência face à hora de fecho.
Quando ouvi esta história fiquei algo surpreendido, mas com o tempo vim a perceber que, na Bélgica, os horários do comércio não se aplicam aos clientes, mas aos funcionários. Se um estabelecimento fecha às seis, isso significa que às seis os respetivos funcionários têm de estar a sair para as suas casas. O que implica que pelo menos meia hora antes (se não mais) deixem de atender clientes e, nalguns casos, impeçam mesmo a sua entrada no estabelecimento.
Esta lógica é levada tão a sério que se um motorista de autocarro, por força de um atraso, vir o seu turno terminar a meio do percurso, já não o completa. Despeja os passageiros numa qualquer paragem, onde poderão esperar pelo autocarro seguinte, e vai-se embora.
Dir-se-á que este é um país onde os direitos dos trabalhadores são escrupulosamente respeitados. E eu acho isso muito bem. Mas os direitos dos trabalhadores não explicam tudo. Não explicam, certamente, a sobranceria e a má vontade com que tantas vezes somos atendidos. Digo-o no plural porque o caso atinge proporções extremas se se tratar, por exemplo, de uma refeição tomada em grupo. O pedido obviamente tem de ser formulado por uma única vez. E qualquer solicitação superveniente será brindada com um resmungo ou, no mínimo, um enfadado revirar de olhos. No final, nem pensar em sugerir um pagamento fracionado por vários cartões multibanco. Os convivas que façam contas entre si, sendo que o empregado de mesa apenas virá para receber o total.
Mas o exemplo crasso de desconsideração pelo cliente, diretamente vivido por mim, deu-se com a saga da instalação da internet. Tudo começou com a entrega de uma série de papelada (em Bruxelas é sempre preciso entregar muitos papéis e todos eles originais, mas isso ficará para outra crónica). Seguir-se-ia um telefonema no espaço de duas semanas (que não ocorreu, tive de ligar eu) para marcar a instalação nas quatro semanas subsequentes. Depois de muito desesperar sem internet em casa, lá chegou finalmente o dia. Deveria faltar ao trabalho e aguardar pacientemente que alguém aparecesse entre as 08:00 e as 13:00. Assim fiz. Mas as horas foram passando e nada. Nada. Absolutamente nada. Quando faltavam dois minutos para as 13:00 e eu me encontrava já em ponto rebuçado, tocou o telefone. Do outro lado um senhor explicava-me que só agora tinha despachado o serviço anterior e portanto naquele dia já não dava. Désolé! Ainda argumentei que estava em casa e o senhor podia vir naquele momento. Ao que ele retorquiu: agora não, é hora de almoço. Alguém me ligaria para marcar outra data. E eu ainda teria de perder não uma, mas duas outras manhãs inteiras até conseguir usar a internet. Cliente sofre…
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 19
Nas notícias por aqui: grande parte de Bruxelas vive numa bolha; exemplo disso foi a excitação recente em torno do Debate sobre o Estado da União Europeia, motivo de grande destaque por cá e praticamente ignorado em qualquer outro lugar
Sabia que por cá: os sacos para reciclagem de embalagens têm cor azul e os sacos para reciclagem de papel têm cor amarela (não era suposto isto estar harmonizado a nível europeu? Ou será Bruxelas que não cumpre as regras “de Bruxelas”?)
Um número surpreendente: eu e mais 2.313.353 passageiros utilizámos o aeroporto de Bruxelas (Zaventem) no passado mês de agosto