Mal consigo ouvir o que o Mr Chris me diz. Na televisão passa um qualquer jogo de futebol e o homem está danado. Grita como se não houvesse amanhã. Quanto mais olha para a televisão mais lança os braços para baixo e para cima enquanto vocifera num futebolês incompreensível. Não me inspira muita confiança: Mr Chris é barbeiro e não tarda vai estar a gesticular com uma tesoura na mão enquanto me corta a melena.
How do you want your hair done? Explico, a medo, apontando com o dedo para as zonas mais “sensíveis”. É a minha primeira experiência a cortar o cabelo longe de “casa” e o típico corte inglês – curto em baixo comprido em cima – não leva propriamente a minha preferência. Chris não presta grande atenção. Alguém acabou de marcar um golo. Percebo a verdadeira importância que o futebol tem para Chris quando olho para as paredes à minha volta. Azuis, de cima a baixo, com posters, recortes de jornais, fotografias de um Chelsea vitorioso.
Mal arranca a luta entre a tesoura a minha guedelha, pergunta-me de onde venho. Portugal. Pausa. Deixo de sentir a tesoura. Mourinho. Devia ter dito que era espanhol ou italiano. Tento remediar que não só não percebo nada de bola como detesto o desporto rei. Mais um silêncio. Gajo, português, e não gosta de bola? Sinto a pressão do polegar de Chris na minha nuca.
Com a mesma rapidez com que troca a tesoura por outra que parece bastante mais ferrugenta, lança outro tema. É cipriota, mas vive em Londres há décadas. Acha que os britânicos devem votar “não” a 23 de junho. Não? Óbvio que não responde Chris. Diz que o Boris Johnson – antigo mayor de Londres e um dos líderes da campanha pelo Brexit – “had the balls” quando decidiu enfrentar Cameron e lançar uma campanha a favor da saída do Reino Unido da União Europeia. E porquê? Exalta-se. Tão confuso como o estado em que está agora o meu cabelo, diz que está farto de refugiados, que o seu país – estará a falar do de origem ou do que o acolheu? – tem que voltar a controlar o seu próprio destino e que a jogada de Cameron ao convidar Obama para vir a Londres assinar por baixo do “yes” foi muito baixa.
Enquanto ele continua o seu trabalho e o monólogo, penso que de facto estamos a uma semana de uma votação histórica. O debate tem sido morno e as sondagens assustadoramente contraditórias. Defendo o “yes” mas nem ouso dizê-lo ao Chris para evitar ir para casa cheio de peladas. E mesmo acreditando que o povo inglês é um povo extremamente racional – “what’s in it for me?” – sinto que este vai ser o momento que muitos vão aproveitar para dar uma lição puramente emocional de independência, supremacia e autosuficiência. E esses muitos ultrapassam, em algumas sondagens, os 50%. Os holofotes da Europa e do mundo vão estar sobre o Reino Unido no dia 23 de junho, mas enquanto não chegamos a esse dia, a verdade é que enquanto uns fazem campanha pelo sim e outros pelo não, a libra lá vai desvalorizando e milhares de europeus que aqui vivem vão pedindo nacionalidade britânica sem que ninguém fale muito nisso. Não vá o diabo tecê-las.
Larga tesoura, vem o borrifador. Conversa seca, penso. Mais tesoura. Salta do Brexit para o tempo sem que eu sequer dê por isso. Estamos em junho, e ainda há pouco mais de um mês nevou. Onde e que já se viu? Chris confessa que já quis regressar à sua ilha natal várias vezes só por causa do tempo. Nós, mediterrânicos, não aguentamos “isto” muitos anos. Ele até tem uma certa razão. Já ando a suplementos de vitamina D há alguns meses. Este capacete cinzento que nos cobre os dias pesa-nos no dia-a-dia, na nossa disposição, na nossa energia. Pior ainda: o tempo, aqui, engana-nos. Uma manhã solarenga rapidamente se transforma numa tarde sombria e chuvosa. Londres passa pelas quatro estações ao longo de um só dia. Os trópicos, afinal, são aqui, com a única diferença de que o inverno é, obviamente, o que fica com a maior fatia.
Arruma a tesoura e olha para mim com a mesma cara que o Duque de Wellington deve ter feito quando aniquilou os franceses em Waterloo – esse marco na História desta ilha que ainda hoje faz parte de muitas conversas entre “bifes” e “frogs”. Em menos de meia hora, falámos de futebol, de política, do tempo e eu fiquei a perceber que estou com muitos cabelos brancos. Deve ser da falta de sol…
Há coisas que nunca mudam. Podia estar a cortar o cabelo em Lisboa, Lima, Londres ou Dhaka. As conversas seriam muito provavelmente as mesmas. Aqui, no meu bairro do sudoeste Londrino, o que muda é o preço – três vezes mais caro do que na minha terra –, e o corte – pareço um cogumelo britânico.