Quando era muito pequena, o meu universo de adultos era restrito a avós, tios, amigos dos meus pais que costumavam aparecer lá por casa e às vozes que saíam do gira-discos (hoje dir-se-ia leitor de vinis). Ou por ser muito pequena e considerar os adultos todos parecidos, mais coisa menos coisa, ou por força da minha miopia não detectada, confundia tudo. Achava que era o próprio Zeca Afonso que tinha acabado de me fazer uma festa na cabeça e a Elis Regina que me transportava ao colo. E era com grande perplexidade que ouvia a minha mãe a desfazer estes equívocos. Já não sei se nestes meus ‘pequenos delírios domésticos’ incluía ou não o Sérgio Godinho. Provavelmente sim. Ele estava lá em casa a ajudar-me a mudar as pilhas do comboio. A verdade é que ele sempre esteve lá. Lembro-me de o ver em fundo azul, com o branco dos olhos ainda mais azul, num 45 rotações, de ouvir, fascinada, o Romance de um Dia de Estada – e talvez este tenha ido no lote confiscado pela PIDE, numa das rusgas que nos fizeram, apesar de a minha avó ter tentado salvar o maior número de discos e livros dos meus pais, escondidos dentro da banheira. Claro que o Sérgio Godinho andava lá por minha casa. Nem sei se não mesmo por entre aqueles grupos que se juntavam, com violas, na praia, a cantarem, longe dos ouvidos da polícia. Sabia as músicas de cor, ainda hoje sei muitas, tenho a cabeça cheia dos seus ecos, sou
contaminada pelas suas palavras que jogam tão maravilhosamente bem umas com as outras e com as melodias e fazem tanto sentido para mim. Tanto que resolvi pôr como título da minha colectânea de contos o nome de uma música sua, por sinal bastante implacável e perversa: Pequenos Delírios Domésticos. Na verdade, o conto a que o título se refere chamava-se Pequenos Ruídos Nocturnos. Mas, a combinação de palavras de Sérgio Godinho já estaria, provavelmente, a repercutir na minha cabeça, e ficou assim, em jeito de homenagem. Entrevistei-o muitas vezes, ele é o maior sonho e o maior pesadelo de qualquer entrevistador. Sonho porque no seu discurso nunca cabe a monotonia e convoca tudo o que me fascina numa conversa: o humor, o riso, um certo tipo de inteligência rápida e astuta, a dispersão, o caos, muitas portas imprevistas que se abrem, atalhos que nos desviam do caminho principal, associações de ideias que tomam cursos improváveis e a curiosidade – uma curiosidade sobre tudo o que é novo (com ele é como diz a música, «vai-se sempre adolescendo») sobre tudo em geral, sobre os pequenos detalhes, expressões, tiques de linguagem, os nossos pequenos ridículos… Sérgio Godinho tem aquela capacidade única e rara de se deslumbrar com coisas vulgares, que é sinal distintivo dos grandes criadores, dos grandes escritores, de livros e canções. Tive a sorte de crescer num ambiente em que se cantava e tocava. Na adolescência, todos os meus amigos
conheciam de cor as suas músicas (depois, na faculdade, a incultura musical era chocante). Fui a tantos concertos, emocionei-me tantas vezes, nunca esquecerei o coliseu a vibrar de entusiasmo com o Maré Alta ( e a maré subiu mesmo, garanto), ainda hoje os acordes que me provocam uma espécie de suspensão no tempo e no espaço são os que antecedem «a Noite Passada Acordei com Teu Beijo». O Sérgio Godinho tocou-me no ombro e a marca ficou lá. Nos dos meus filhos também. O meu filho mais velho, apenas com dois anos, interpelado por uns miúdos: «De que clube és?» E eu muito atrapalhada por ter passado a minha incultura futebolística para a criança, sabia lá eu ensinar-lhe benficas e sportings. Ele respondeu: «Eu sou do clube do Sérgio Godinho». Ele, entretanto, cresceu, também com a Etelvina, a Carolina, a Alice, o Casimiro, a Rita, a linda Joana, a feia Alcina, o senhor Marquês, o Velho Samurai, licenciou-se em Ciências Musicais, sabe mais de Sérgio Godinho do que eu e tinha razão: cá em casa somos do clube do Sérgio Godinho.