Quando Elfriede Jelinek, em 2004, se tornou a primeira austríaca a receber o Prémio Nobel de Literatura, todos pensaram a mesma coisa: o seu compatriota Peter Handke jamais ganharia a coroa dos escritores. Aliás, uma situação semelhante se passou em Portugal, quando José Saramago ganhou o prémio, e tal parecia ser um triunfo sobre António Lobo Antunes. Desde 10 de outubro, Lobo Antunes pode recuperar esperança. Handke, finalmente, aos 76 anos, recebeu o Nobel. E recebeu-o apesar de grandes obstáculos políticos que, em parte, ele próprio tinha erguido.
Peter Handke nasceu na pequena vila de Griffen em Caríntia, numa família simples, da parte da mãe de origem da minoria eslovena, do lado paterno carintiano de língua alemã. A minoria eslovena sofreu muito no tempo do Terceiro Reich, e já para o pequeno Peter, cheio de talento, a justiça era um assunto central, especialmente aquela para os povos do sul. O seu professor de alemão notou, “quem escreve este tipo de ensaios com 15 anos, terá o Prémio Nobel com 50.” Enganou-se, demorou mais tempo.
Handke ficou famoso com a peça de teatro Insulto ao público (1966), o romance com o título paradoxal A angústia do guarda-redes antes do penálti (1970; filme de Wim Wenders em 1972) e o relatório sobre o suicídio da mãe, Aventura da Infelicidade (1972). Mais tarde, o escritor rebelde abandonou o género do romance e destacou-se a lutar contra qualquer convencionalismo. O incansável experimentador criou a sua própria linguagem poética, meiga e delicada. Isso vê-se especialmente nos cadernos e nos ensaios, por exemplo na virtuosa Tentativa sobre o louco de cogumelos (2013). O seu colega e competidor Thomas Bernhard uma vez tinha dito com sarcasmo: “Na obra dele, até que o protagonista saia da sua própria casa ou do jardim já vais na página 60.” Seja como for, o inconformista tornou-se um artista canónico, sem dúvida um dos mais influentes escritores de língua alemã e, com 90 livros publicados, certamente um dos mais produtivos.
Porém, Handke nem sempre era homem de paz. “Eu ainda sinto a sua bota de caminhada na barriga”, relatou uma ex-namorada, numa carta aberta, em 1999, denunciando maus-tratos. Mas o escândalo principal naquele período foi outro. Perante a guerra de Jugoslávia, defendeu o ponto de vista da Sérvia e do seu líder, pois para ele o estado de Tito era representante de uma “terceira via”. Neste contexto tinha alguma lógica sentir uma aversão contra a nova geração de políticos turbocapitalistas, tomando o partido de Slobodan Milošević, presidente da Sérvia e Jugoslávia; e até teve um encontro amigável com o criminoso da guerra Radovan Karadžić. Em 1996, publicou o livro Uma viagem de inverno pelos rios Danúbio, Save, Morawa e Drina ou: Justiça para a Sérvia. No texto, Handke é sobretudo nostálgico envolve-se contra a demonização dos sérvios. Foi um dos maiores críticos do bombardeio de Belgrado pela NATO, em 1999, com o argumento válido que faltava a legitimação da ONU. De qualquer maneira, a União Europeia capitalista e neoliberal nunca era – e continua a não ser – ao seu gosto.
Até aí tudo bem. Mas em vários entrevistas, Handke perdeu o bom senso, quando as perguntas não lhe agradavam. Depois da apresentação de uma das suas peças no Akademietheater de Viena, em 1996, um jornalista mencionou o genocídio de Srebrenica. Handke respondeu: “Imbecil, imbecil! Enfie a sua perturbação no cu, vá para casa, chupe o dedo grande do pé, vá embora, não vou mais falar com o senhor!” Na semana passada, a Associação das Vítimas de Srebrenica mostrou-se chocada pela escolha. Ela exige que o Nobel seja retirado de uma pessoa que fez um discurso no funeral de Milošević.
Grande provocador, Handke ainda hoje em dia provoca exageros e explosões emocionais: “The Bob Dylan of Genocide Apologists”, caracterizou-o o New York Times. Claro, a separação entre homem e trabalho é sempre difícil. Ainda por cima, o Prémio Nobel não é atribuído por um bom comportamento. E não há outro escritor capaz de descrever um passeio tão magnificamente como Handke, ninguém criou um cosmos literário com frases tão fulminantes. E no seu livro A noite moraviana (2008), ele mostrou-se autocrítico e equilibrado. Por sua vez, num texto n Süddeutsche Zeitung (2006) afinal descreveu Srebrenica como “o pior crime contra a humanidade cometido na Europa após da guerra”, de maneira que os seus defensores têm bons argumentos contra a falsa narrativa que ele não seja mais do que um vaidoso nacionalista. A conhecida germanista Sigrid Löffler recomendou no jornal Falter, que os críticos não se fiquem pelas ideias feitas, mas leiam os textos do austríaco.
Muitos estão curiosos em saber como Handke se vai apresentar no dia 10 de dezembro na cerimónia de entrega do Prémio: domado e gentil? Dois dias após a decisão da Academia Sueca, os austríacos, pelo menos, já foram testemunhas de uma nova reação furiosa. Um jornalista citou a reação negativa do atual vencedor do Prémio do Livro Alemão, Saša Stanišić, nascido em Višegrad, na Bósnia, em 1978, que afirmou ter “a sorte de escapar àquilo que Peter Handke não descreve em seus textos”. “Eu venho de Homer, eu venho de Tolstoi, eu venho de Cervantes!”, o poeta repreendeu em voz alta, ”deixem-me em paz e não me perguntem mais esse tipo de coisas!“J
* Martin Amanshauser, www.amanshauser.at, escritor e jornalista de viagens, nasceu 1968 em Salzburg. Último livro: “Es ist unangenehm im Sonnensystem” (2019, “É incomfortável no sistema solar”). Em português publicou o romance “Nilo” (Teorema, 2003)