A tradição retórica dividia a expressão poética em vários géneros, nomeadamente o lírico, o dramático e o épico. Com a modernidade, e de uma maneira mais polémica com o Modernismo do início do século XX, desenhou-se a tendência para converter a sentimentalidade ou a subjetividade que caracteriza o lirismo numa expressividade que corresponderia ao género dramático. Como se pode ler em qualquer compêndio de retórica do século XIX – onde o lirismo predominava por via do Romantismo e uma subjetividade descabelada por via dos ultra-românticos — , não é o autor, no caso do género dramático, mas “o personagem mesmo […] que se revela por seus discursos” (cito de Elementos de Poética de Ferreira de Bastos, datado de 1872). O personagem ou os personagens é que são o tal outro, a outra “persona” ou “personae”.
Neste momento logo nos lembramos dos heterónimos de Fernando Pessoa que, afinal, são as “personae”, isto é, os outros, o que faz com que a poesia se afaste de uma tonalidade subjetiva para ganhar uma objetividade encontrada na própria linguagem ou discurso. O outro fala no poema, o que conduz àquela noção de “fingimento” que o modernista Pessoa soube lucidamente entrever e que teorizou ao considerar uma poesia dramática que o exemplo de Shakespeare facultava quando, por exemplo, Hamlet ou outros figurantes eram os “seus discursos”, o mesmo é dizer que eram a própria linguagem.
E o género épico? Ele pressupõ, como foi dito pelo mesmo Ferreira de Bastos, o desenlace de uma ação que se apresente sob a forma de uma narrativa estruturada (isto é, com “ligação íntima entre as partes”) de modo que se caracteriza tal ação pela sua unidade, servindo-se o mesmo precetista dos Lusíadas camoniano para exemplificar a “ligação” a que se refere.
Tudo isto vem a propósito de dois livros que saíram recentemente: Vinte Poemas para Camões, de Manuel Alegre, e 31 Sonetos de William Sakespeare, traduzidos por Ana Luísa Amaral.
Importa desde já referir que Manuel Alegre é visto por alguns críticos, aliás com boas razões, como sendo um poeta em que existe um pendor épico, mas conjugável com uma acentuação lírica. Ora nestes Vinte Poemas talvez se possa encontrar uma terceira acentuação: a dramática.
Porquê? Porque nesses poemas Camões não é o outro como personagem. É, sim, o outro como linguagem. O “canto”, a “escrita”, a “intonação”, as “sílabas do dito e do não dito”, a “gramática”, o “florir da cada letra”, a “conjugação de sílaba e fonema”, etc. — palavras retiradas do primeiro poema do livro – são suficientes para mostrar que a figura de Camões se torna numa segunda figura que é a da palavra no poema. Camões é neste livro o mediador, como, por exemplo, o Padre António Vieira ou o Bandarra podem surgir como tal na Mensagem de Pessoa ou como essa grande figura que se torna impessoal porque é a da ibericidade se revela nos Poemas Ibéricos de Miguel Torga.
A leitura de passos de um poema como os que se seguem tornam bem explícito o que acabou de se dizer: “Metáforas excessivas: por que nelas morras/ por que nelas vivas. Imagens penduradas nas/ ogivas das palavras por vezes/ obsessivas. Onde te libertas onde/ te cativas. […] Vocábulos que se multiplicam/ por dentro da linguagem. […] Eis aqui quase cume/ da cabeça o lume e o teorema/ da palavra. Rio corrente do/ poema”.
Neste livro (em que Manuel Alegre retoma uma edição de 1992, então ilustrada por David de Almeida, mas agora completada) parece ganhar relevo especial uma acentuação dramática ao enveredar-se por aquilo que aqui se designou por uma alteridade expressiva. Há uma tonalidade que ganha todo o seu relevo no modo como se recorre à rima interior, a paronímias, ao “enjambement” que, como se dá neste caso, pode criar um possível sentido duplo (“sílaba á/ tona”), à chamada enumeração caótica, a uma implícita alusão a uma retórica maneirista de raiz camoniana.
Outro aspeto a considerar: a maneira como nesta poesia surgem em certos momentos alusões à História de Portugal que seria “um país por dizer” ou, então, ao modo como essa história se relacionaria com a vida do autor dos Lusíadas: “naufrágio Dinamene amor ausente/ caravelas partindo nas vogais/ amar e mar e nunca ter senão/ desterro despedida e nunca mais”. Assim ficam desenhados alguns dos caminhos que tão sugestivamente se cruzam nestes Vinte Poemas para Camões.
Ana Luísa Amaral (ALA), por sua vez, publicou agora a tradução de 31 Sonetos de William Shakespeare. É um excelente encontro de Shakespeare com a nossa língua, sucedendo à também excelente edição de Vasco Graça Moura (VGM), mas esta numa versão integral, saída em 2002. Os critérios escolhidos por ambos são, sob dois ou três aspetos, diferentes. VGM é fiel à estrutura do soneto inglês quanto à disposição das rimas e ao uso do decassílabo. No caso de ALA há uma maior liberdade. Embora mantendo a disposição estrófica do soneto, ela altera a escansão, usando com bons resultados rítmicos o alexandrino em vez do decassílabo, substitui a fixidez quanto às rimas do soneto por jogos de assonância, aliterações ou rimas internas. O resultado de tais opções cria uma linha rítmica que, apesar da tradição do decassílabo ter-se tornado quase decisiva sobretudo a partir dos sonetos camonianos ou anterianos, garante um perfeito envolvimento melódico ou modulação que se ajusta a uma língua que é menos sintética como é o caso da portuguesa em relação à inglesa.
Este soneto é um bom exemplo do que se disse: “Dos mais formosos seres esperamos descendência./ Que a beleza da rosa possa, eterna, viver,/ Mas, assim como o velho com o tempo definha,/ Possa o seu doce herdeiro dele a memória ser./ Mas tu, comprometido ao teu brilhante olhar,/ Alimentas-te em chama com a tua própria luz,/ E fomentas a fome onde existe opulência,/ Tu próprio o inimigo, o mais cruel, de ti./ Tu, que és hoje do mundo ornamento perfeito,/ Que és, só por ti arauto da alegre Primavera,/ Em teu próprio botão enterraste a alegria,/ E esbanjas-te, meu querido, dissipas-te a sorrir.// Tem piedade do mundo, ou ele irá engolir/ O que a ele é devido, pela tumba e por ti”.
Servem exemplos como este para mostrar como em poesia e na confluência de línguas diferentes é importante o papel desempenhado pelo ritmo, pelas linhas de desenvolvimento fónico ou de equivalências que pertencem à dimensão significante quando esta se cruza com uma verbalização significativa, sobretudo com virtualidades de sentido muito especiais tão características do Maneirismo, o que é, precisamente, o caso da poesia de Shakespeare. Como reconheceu Marina Tsvetaena numa carta dirigida a Rilke, que serve de epígrafe à introdução deste livro, traduzir é sempre passar ou ir para além “da outra margem do rio”.
BD: Coimbra
João Ramalho Santos faz uma viagem em volta de dois livros que saíram recentemente: Vinte Poemas para Camões, de Manuel Alegre, e 31 Sonetos de William Sakespeare, traduzidos por Ana Luísa Amaral.
Mais na Visão
Parceria TIN/Público
A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites