Poeta e tradutor, versado em poesia sonora e visual e em poemas animados por computador, professor do Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Universidade de Coimbra, Manuel Portela é o curador do ciclo dedicado a Ana Hatherly, no Festival Silêncio. O JL conversou com ele para conhecer melhor esta celebração da ‘multímoda’ poetisa, ensaísta e artista.
JL: Qual é o conceito que está por trás desta homenagem a Ana Hatherly?
O conceito principal é o que está expresso através do título do ciclo: “Ana Hatherly: Anagrama da Escrita”. Ou seja, a ideia de que toda a obra de AH pode ser revisitada e celebrada a partir de uma noção multiforme de escrita, que interroga a nossa relação com os signos. Creio que é possível observar a sua obra poética, narrativa, plástica, fílmica, performativa e ensaística através dos inúmeros gestos, atos, signos e formas da escrita. AH dá-nos a experiência da criação como ato lúdico de descoberta e de experimentação que conduz a um leque infinito de formas e sentidos. Esta experimentação lúdica permite-nos participar do mistério da escrita como possibilidade de invenção do sujeito que escreve e de reinvenção da linguagem que abre um ângulo de existência mundo.
Quais foram as vossas principais preocupações a montar o ciclo?
Form duas: dar a conhecer as múltiplas dimensões da sua obra, unificadas através de uma noção multiforme de escrita, e mostrar como essa obra interpelou e continua a interpelar poetas e artistas de várias gerações. Daí que as diferentes iniciativas incluam obras de Ana Hatherly (exposição de poesia visual, projeção de filmes, leituras dos seus textos) e sessões sobre a sua obra (mesa-redonda, projeção do documentário A mão inteligente), mas também novas criações em múltiplos meios feitas a partir dela (exposição, performance, instalação, dança, arte digital). Estas apropriações e ressignificações mostram-nos a força inspiradora da sua imaginação criativa.
Como foi transpor o universo poético de Ana Hatherly para um festival com características urbanas e vanguardistas como o Silêncio? É objetivo dar a conhecer a sua poesia num contexto mais eclético, mostrando que os universos se tocam?
Ambas as preocupações procuram corresponder à filosofia do Festival Silêncio – articular uma lógica de divulgação com um lógica de reflexão capaz de envolver um público alargado num conjunto de trocas comunicativas que se inscrevem em determinados lugares da cidade. Na medida em que a edição do Festival Silêncio em 2016 tem a noção de “Fronteira” como tema geral, o ciclo AH dialoga ainda com esse tema ao mostrar a obra de AH como um campo integrado de criação capaz de interrogar as fronteiras disciplinares, discursivas e institucionais que separam as artes da palavra das artes da imagem. Pela sua natureza multiforme, a obra de AH permite recontextualizar e repensar diversas práticas contemporâneas, incluindo aquelas que têm integrado ao longo dos anos a programação do Festival. Conhecer, celebrar, comunicar – são três palavras que permitem integrar os objetivos deste ciclo específico nos objetivos mais amplos do Festival.
E o que se poderá retirar da transversalidade com outras artes, sobretudo as artes plásticas?
Ao tematizar a noção de escrita como “pintura de signos” (um conceito da própria autora), a exposição que lhe é dedicada tenta mostrar os diversos meios e processos de inscrição presentes na sua obra. Quer o texto-imagem, quer a experimentação matérica e intermedial com os gestos e sinais da escrita ligam entre si as múltiplas facetas da sua obra teórica, literária, visual e fílmica. De facto, as categorias de perceção que separam os aspetos pictográficos e logográficos da gestualidade caligráfica, por exemplo, são interrogadas por obras que se situam entre a linguagem verbal e o desenho ou entre a linguagem verbal e a pintura. Estas fronteiras são também as fronteiras institucionais e teóricas através das quais se constroem os sistemas da arte. A transversalidade entre o literário e o visual é, na sua obra, um dos elementos que desafia as categorias discursivas da arte e os nossos modos de ver e sentir.
Quais são as características da escrita de Ana Hatherlty que este festival pode evidenciar mais?
Creio que o conjunto de iniciativas que lhe são dedicadas permitirá observar toda a sua obra como um campo integrado de experimentação poética, como uma aventura física e mental de descoberta. Ao descrever o poeta como um calculador de improbabilidades, isto é, alguém que inventa formas inesperadas e não redundantes, Ana Hatherly sublinhou a descoberta como uma das finalidades da experimentação artística. Essa seria, a meu ver, a característica principal da sua escrita (entendida no sentido multiforme já referido): a revelação da própria escrita como processo de descoberta e invenção do sentido.
Que outro poeta gostaria de homenagear em próxima edição?
Talvez “celebrar” fosse uma palavra mais adequada – por implicar menos solenidade e menos distância temporal e institucional. Em Portugal não faltam poetas (homens e mulheres) extraordinários, cuja obra merece ser celebrada, conhecida e debatida