Mais do que remeter para o título do romance de Alberto Moravia, quando falamos de «ambições frustradas» acerca de uma poesia como a de Pedro Mexia falamos, sobretudo, do decetivo, do merencório e de uma irrecuperabilidade que o verso, em Mexia, arrasta consigo. Sucede que esse tom elegíaco, com verbos quase sempre no pretérito, não dispensa aquilo que para Robert Burton era a melancolia como doença e para Leão Hebreu eram as inclinações do amor consoante os objectos.
Entre inclinação e doença, entre frustração e passagem do tempo, o que se joga em Uma vez que tudo se perdeu (Tinta-da-China) é o que lemos em autores de referência de Mexia, entre os quais se contam Thomas Hardy. Num paratexto que encima este breve volume, da poesia de Hardy diz Samuel Hynes que é o tempo a matéria do seu discurso: o presente é um passado que não se pode resgatar, a observação torna-se memória e a visão do mundo – fundada numa filosofia niilista, num certo ceticismo que deriva da crise da subjetividade e da linguagem tal qual lemos na Carta de Lord Chandos, de Hoffmansthal – oscila entre expectativa e derrota. O primeiro poema dá conta do movimento pendular da escrita de Mexia: «Chandos disse ancinho / que significa? / Disse vaso. / Disse gardénias. // Coisas denotativas, / descomplicadas, / que significam?» (p.7). Entre denotação, descomplicação da linguagem e a certeza de que algo de inominável ou de mistério paira sobre a vida, as coisas, os sentimentos e a razão, Mexia vem falar-nos da doença da linguagem, do próprio poético. Por isso a referência a Philip Larkin, fonte inesgotável dos modos de recensear esse próprio poético entre o que a palavra conota e o que denota. Decerto que há poemas em que o sujeito, muitas vezes em clave elíptica, e outras vezes mais descritivo ou literal, faz da linguagem o palco onde abandono e desencanto, queda dos ideais e estranheza em relação à existência, canta o «coração vago», mesmo se por interpostas vozes, como é o caso do poema Ele Desiste.
Não há, por outro lado, cedências ao exasperado ou ao emocional. O universo de Mexia, pejado de perdas, de «grandes esperanças» que se desvaneceram é um universo realista, mas de um realismo fictício, já que a linguagem é um modo de duvidar, de dividir, de saber que nem mesmo o que foi concreto resiste à dura lex, o tempo que passa. Irrompe do seu realismo a contradição como figura incontornável de um dizer hipotético, no qual se adivinha aquele camoniano modo de cantar o que as palavras não podem já entoar: «Um contentamento tão contente. / Uma acção que não aconteceu / descrevemos concluída. / Uma anterioridade de um tempo futurível / ou de um modo imperativo. / Um facto terminado e garantido / como acreditávamos. […]» (p.14). Uma poesia que assim se pretende elegíaca poderia correr o risco de ser artificial. Não o é. O sujeito que nestes poemas evolui é fruto de uma construção elocutória assente no rigor rítmico e na profundidade do que representa, imagens, episódios, mesmo referências literárias. A parateatralidade (leia-se o poema Epílogo, por exemplo) é, de resto, uma das estratégias discursivas seguida por Mexia no sentido de não fazer cair o elegíaco nos perigos do confessionalismo ou da sentimentalidade. Num jogo de vozes que temos de ler como consciência do autor relativamente ao que é a poesia dramática, Mexia atinge momentos de forte vibração e intensidade: «Príncipes, à noite, celebram o quê? / Ou príncipes paralelos à noite, como o rio à cidade, / amparado por dunas, rochedos, fortes, vivendas. / Pequeno oceano estático para rapazes de Lisboa. // Corações ao alto, seguíamos, intocáveis, fluviais, / noctívagos, plácidos de algumas certezas / e ainda mais ambições, grandiosos ou pedestres / dependendo de fazermos ou não uma trégua irónica.» (p.18). Essa vibração e intensidade nem sempre a achamos formulada nos mesmos termos.
Em textos de cariz mais individual, a enunciação persegue ainda a dramatização lírica, na senda do que Pessoa legou (a poesia como um pensar que sente, a teatralização de uma emoção primeira, transferida «como se» fosse realmente sentida, estádio último do poético: correlativo objetivo em Eliot). Em Flor Nenhuma, os dísticos (lembrando Wallace Stevens?) confirmam essa dicção e intencionalidade: «Fiquei derrotado pelos / acontecimentos, assim a amizade, // estame quebradiço, que tanto // nos assombra quando declaramos // impensável, cada um à sua vez, / a natureza ou as conveniências […] // idealismo insubstancial, impensado, / a má poesia do que é genuíno.» (p.23).
Entre versões suas de autores que pertencem às suas afinidades eletivas e textos onde a biografia se mostra, Uma vez que tudo se perdeu, expõe a poesia «noite escuríssima, comoção inútil» (p.69), o engano entre o épico e o lírico, entre factos heroicos e outros menos dignos de uma vida que, aos 40 anos, é a que se pode revelar de alguém que se vê entre a serenidade do desânimo e a intempestiva natureza da vida. A herança de Ruy Belo, não só no título, ainda que sujeito a subtil alteração, faz-se sentir na forma como em Pedro Mexia a poesia é cada vez mais uma maneira de fotografar ócios e negócios, verões que se perderam, bucolismos a destempo, tardes e praias da infância e adolescência. Os textos mais declaradamente metaliterários vão como que mapeando os trilhos de um poeta que, na nossa geração, soube sempre que ironia e deceção são faces da mesma moeda. Por isso pode escrever: “Esqueci ou desfiz o museu de imagens, / ígneas, demoníacas, a teologia do catecismo, / as fórmulas de susto. / Ficou apenas a certeza de um inferno.” (p.52)