“Um homem que renunciou à pátria, a Salazar e à família por amor.” É este o retrato que Sofia Pinto Coelho, jornalista, 51, faz do avô, Luís Pinto Coelho, advogado e embaixador, figura do Estado Novo, que renunciou ao que defendia empenhadamente pelo amor a Kit, uma modelo norte-americana 20 anos mais nova que conheceu em Madrid, e com quem se casou em 1971. “A classe social de onde ele emerge torna esta história única, porque há, de facto, uma grande encruzilhada interior” adianta a autora ao JL. Licenciada em Direito e com um percurso onde a justiça marcou sempre presença, mormente em programas na SIC, onde trabalha, Sofia Pinto Coelho nega que este livro seja uma tentativa de fazer justiça a um homem que se desviou das regras impostas pelo regime salazarista a que estava ligado. “Foi uma coisa completamente diferente e muito difícil. Não só pela relação familiar – com tudo o que implica, de não querer ferir a sua memória e de tentar ser justa -, mas também do ponto de vista de construção da escrita.”
Jornal de Letras: Quando é que percebeu que tinha de contar a história do seu avô?
Sofia Pinto Coelho: Foi um processo muito lento. Descobri um espólio de documentos e filmes em 2008, quando o meu pai morreu, e decidi agarrar nesses filmes e digitalizá-los. Por graça, fiz um filme de família com as imagens antigas, mas não pensei mais no assunto. Mais tarde, a Marisa Vieira, minha colega da SIC, estava a elaborar um trabalho universitário e descobriu que o meu avô tinha feito um filme de época muito célebre, uma espécie de ícone do Estado Novo chamado Chaimite. Veio falar-me sobre a minha família, que a minha mãe [Maria Filomena Mónica] era de esquerda, que tinha um primo do PNR que era fascista [José Pinto Coelho], e que agora aparecia este avô realizador de cinema… Expliquei-lhe que era um professor catedrático de Direito, que tinha ido para embaixador e teve uma paixão enorme, que causou um verdadeiro terramoto na sua vida. Disse-me que devíamos contar esta história, mas passaram-se meses até ficar convencida de que havia, de facto, uma história por e para contar.
Há em geral uma ideia muito ‘fechada’ sobre as figuras ligadas ao Estado Novo…
Não tinha essa perceção, porque sempre o vi como ‘o meu avô’. Mas quando comecei a contar a história aos meus colegas, percebi que a ideia do avô salazarista era um chavão que causava reações. Também me causou uma certa irritação a ideia de que ‘se és comunistas és bom, se és salazarista és mau’. O rótulo que tudo abafa incomoda-me imenso, e portanto gostei da ideia de aprofundar o conhecimento sobre a vida deste meu avô. Não tinha percebido que essa coisa do homem salazarista era um pedregulho que existia e que tinha de se ir encarando.
A visão que tinha sobre este avô alterou-se? Qual foi a maior surpresa?
Alterou-se completamente porque o descobri. No fundo, eu não o conhecia. As cartas que enviava surpreenderam-me pela qualidade da escrita. Lê-las deu-me imenso prazer porque são muito bem construídas e há um despojamento dos sentimentos. Parece que ele está a falar connosco. E isso é um dom.
O que é que a história do seu avô nos diz, hoje, de nós?
Diz que mudámos brutalmente em termos de costumes. Tudo mudou sobre as ideias de Pátria, de dedicação a um serviço público, de lealdade ao Estado e a uma figura paternal. Pressenti que esses traços vincados do meu avô iriam atrair muitos saudosistas do antigo regime – e já recebi e-mails que o confirmam. Mas também senti que podia mostrar aos mais novos como é que o Estado Novo nasceu e como é que a cabeça de uma pessoa que estava dentro do regime pensava.