Os livros são uma sedentarização das ideias e não é por acaso que a escrita aparece precisamente quando surgem a agricultura e as primeiras cidades. São Paulo dirá mais tarde que a letra mata, o espírito vivifica. A deambulação e a divagação, ainda que exista na interpretação e na exegese do texto, ou mesmo na própria subjetividade inerente à palavra, ela é evidentemente muito maior na oralidade ou no pensamento, onde as mutações e as metamorfoses de uma ideia são constantes. Quando passamos um pensamento para o papel, fixamo-lo de alguma maneira. Pode tornar-se uma propriedade ou uma lei. Transforma-se numa espécie de estátua de uma ideia, a sua representação menos efémera, exigindo-se mesmo, em algumas situações, um castigo severo a quem adulterar um texto, desde livros sagrados a contratos comerciais.
Apesar da frase de São Paulo mencionada antes, a fixação do espírito nas páginas dos livros permite coisas únicas. Podemos ler o que um homem pensou há dois mil anos, ter na cabeça os mesmos pensamentos que Séneca teve ao escrever a Lucílio. Há uma justaposição separada por vários séculos que só é possível porque as palavras se fixaram através da escrita. Poderíamos argumentar que a oralidade permite um fenómeno semelhante, o que poderia ser verdade dentro dos limites da memória, mas não teríamos jamais a escolha que existe numa biblioteca. O conhecimento ficou realmente próximo, não só no que concerne ao espaço, mas também ao tempo. Podemos, assim, colocar séculos diferentes em diálogo, provando que, neste caso, é a letra que o permite.
A tradição judaica manteve uma luta constante contra a sedentarização do discurso, fazendo da interpretação do texto sagrado um método, uma espécie de retorno ao nomadismo. A guematria é um caso extremo desta inconformidade.
As letras e as palavras têm valor numérico e podem ser substituídas por outras com o mesmo valor. Isso permite uma quantidade assustadora de interpretações e de caminhos. A palavra escrita volta a ser nómada e o seu significado não fica preso a um território, à sinonímia, ao dicionário.
Esta procura de liberdade primordial está também patente na proibição de nomear Deus. Isso seria confiná-lo, defini-lo. Impor limites a algo inerentemente ilimitado. O pudor de representar imagens deve-se a isso mesmo. Dar um rosto implica negar todos os outros rostos concebíveis ou inconcebíveis. Apesar de a humanização de Deus ser um factor de proximidade entre Criador e criatura, não deixa de ser uma limitação, uma definição de um território. O cristianismo defende a ideia do rosto de Deus como algo importante na relação com os homens, mas independentemente das putativas vantagens ou desvantagens de uma antropomorfização divina, a verdade é que, para alguns povos ou culturas, existe uma dificuldade real na fixação, numa transformação definitiva, mesmo em algumas religiões profundamente ritualizadas.
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Muitas das minhas viagens começaram pelos livros. Foram caminhos que saíram das folhas e se prolongaram para lá das estantes, das paredes da biblioteca. A viagem foi de certo modo uma corroboração da literatura, uma experiência diferente daquela que havia feito enquanto lia. Curiosamente, muitas vezes culmina na escrita, já que depois da viagem há o desejo ou a necessidade de solidificar a experiência, torná-la um objeto partilhável, materializar emoções, afetos, pensamentos, enfim, fazer da viagem um espaço imutável, parado, mas acessível aos outros, que com a sua própria experiência farão da leitura uma forma de viagem.
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Para reencontrar uma memória perdida temos de ir fisicamente ao lugar onde a perdemos. Esse é um fenómeno que certamente a maior parte de nós já experimentou: levantamo-nos do sofá da sala e, ao abrir a porta para sair de casa, não nos lembrarmos do que íamos fazer à rua. Voltamos então atrás para recuperar essa memória e quando nos sentamos outra vez no sofá, faz-se luz. Este é o processo da viagem nómada, que relembra os seus mitos e a história dos antepassados por se deslocar fisicamente e ciclicamente aos lugares onde os acontecimentos se deram. Com a escrita, isso não é necessário, a história está sobretudo nas estantes. E esse é um dos motivos pelo qual muita gente, em que me incluo, fala em viagem quando se refere à leitura.
Contudo, uma vez num bar em Montevideo um homem falava das suas viagens, quando uma senhora sublinhou que havia outras formas de viajar, como ler, por exemplo, viajar mentalmente. O homem respondeu que também há muitas formas de higiene e que ler também é uma delas, mental, claro, mas tem muito pouco a ver com a outra, com água e sabão, e por mais livros que lesse, não descartaria o banho semanal.
Mais tarde em Lisboa, ao caminhar com um amigo, ouvimos uma conversa entre duas senhoras:
-Toda a gente tem joanetes, só que uns saem para fora e outros não.
Exatamente como as pessoas: umas saem para fora e outras não, diria o homem do bar de Montevideo.