A crise e as suas sequelas à microescala de uma família é o pano de fundo de Colo, o novo filme de Teresa Villaverde, que se estreou no festival de Berlim echega agora às salas portuguesas. Um olhar pessoal e esteticamente apurado sobre um drama familiar imposto por condições externas subjacentes. Colo é a primeira longa-metragem de ficção da realizadora desde Cisne, em 2011. Teresa Villaverde, 51 anos, é uma das realizadoras portuguesas mais distinguidas nacional e internacionalmente. O seu primeiro filme, Idade Maior, com Maria de Medeiros e Joaquim de Almeida, é de 1991. Seguiram-se-lhe filmes como Três Irmãos (1994), Os Mutantes (1998), Água e Sal (2001) ou Transe (2006)
JL:Quais foram as suas motivações para fazer este filme? Teve como ponto de partida a necessidade de abordar a crise económica em Portugal?
Tersa Villaverde: Na minha forma de trabalhar nunca houve o pensamento consciente de que era preciso denunciar uma situação. O que sempre me moveu, ou num certo sentido, acordou, foram sensações que não procurei, mas que vieram ter comigo. Em 2018, Os Mutantes fazem 20 anos, cheguei aos Mutantes através de um documentário que não fiz, e que era um levantamento gigante sobre a infância em Portugal. Ninguém se interessou pelo projeto e, sem financiamento, tive que parar. A vontade de fazer esse documentário veio de uma história que me contou o meu irmão sobre umas crianças alentejanas que lhe perguntaram se em Lisboa havia naves espaciais, e foi essa pergunta que me acordou para esse projeto. No meio da preparação, conheci os miúdos institucionalizados, mas fui-me embora para Londres trabalhar noutra coisa, só que esses miúdos não me saíram da cabeça, e nasceram Os Mutantes. Um processo parecido com o Transe, e por aí a fora.
Sempre me interessou esta coisa da surpresa, de como se reage quando nos acontece na vida uma surpresa com que não contávamos. Ficar, de repente, sem trabalho é um grande murro no estômago, e cada pessoa reage à sua maneira. Não haver outro trabalho para procurar é ainda pior.
Aborda a crise económica à microescala de uma família. Os efeitos são devastadores. Mas não há capacidade de reação, nem que se lixe a troika que lhes valha, é como se fossem vítimas de uma mão invisível que os estrangula, sem que consigam ver o oponente contra o qual devem lutar. Foi assim que viu a crise? É uma forma de dar voz àqueles que silenciosamente sofreram?
A angústia é algo individual e paralisante, causa depressão que é a coisa menos reativa que há. Acho que quando houve aquela manifestação gigante em 2012, a primeira do Que se lixe, as pessoas sentiam-se todas no mesmo barco, depois começaram a ver que não era bem assim, e que uns iam ficando pior que outros. Veio o medo de ficar tão mal como os que já estavam mal e as pessoas foram-se isolando. Não é como quando acontece uma catástrofe natural ou uma guerra, em que todos sofrem por igual. Aqui muitos desempregados iam ficando com vergonha da sua situação, primeiro perante os de fora, e depois mesmo perante os elementos da família. Em muitas famílias instalou-se um silêncio novo, um problema diferente dos problemas que as famílias já conheciam. Claro que nem todas as famílias reagiram assim, felizmente, mas o que me interessou mais foi esse silêncio.
Porque não lhe interessou focar a questão político-económica envolvente e apenas as suas consequências? Subentende-se o contexto, mas há uma espécie de aceitação por parte das personagens, não se ouve maldizerem os governantes, é como se não reconhecessem nem procurassem os culpados da sua situação…
É um filme de ficção sobre uma família, trabalho com personagens. Não sei o que é fazer um filme sobre a Troika, os bancos. Interessa-me o lado da submissão do governo português dessa altura, por exemplo, mas não sei se sei fazer uma coisa dessas. Interessa-me olhar para a cara deles, imaginar o que estão realmente a pensar, mas penso que não saberia fazer um filme sobre isso. Se me disserem que o Passos Coelho se disponibiliza para que eu o possa filmar durante um ano para cá e para lá, não quero, não me interessa.
E sim, penso que quando chegamos à angustia e à vergonha por termos perdido o nosso trabalho, por não termos dinheiro para honrar os nossos compromissos, há o grande risco de acharmos que a culpa é só nossa, perdemos a energia para sequer tentar identificar o que nos levou àquela situação.
É um filme sobre os efeitos psíquicos e emocionais da crise? Mais do que os empregos e casas perdidas por si só, interessoulhe abordar as sequelas afetivas, psicológicas, psiquiátricas, a destruição das famílias? São sequelas terríveis e difíceis de contabilizar…
Muitas famílias foram talvez irremediavelmente destruídas. As relações entre muitas das pessoas mudaram. Filhos e pais, mulheres e maridos e vice-versa. Mesmo com melhores políticas a nível nacional, isso não vem com varinha mágica, os afetos não se alteram por ordem governamental.
O pai está à beira da loucura logo desde o início do filme. Apanha aquela família já em queda, mas as coisas podem sempre piorar. Interessou-lhe abordar a queda, o precipício e não as suas causas?
Acredito que não se pode abordar tudo ao mesmo tempo. Intuímos que a falta de trabalho do pai foi o que desencadeou aquele desequilíbrio na família. Olhei para eles sempre não de muito perto, com algum respeito de quem também olha para o desconhecido, tal como eles. São ficção, mas quando eu os filmo acredito que estão ali, que eu estou na casa deles, e que nem perguntei se podia estar. Não falei dos atores, mas são muito importantes, são eles que materializam tudo.
A curva parece sempre descendente rumo à destruição familiar por via do desespero e da incomunicação. Mas, ao mesmo tempo que a ação exterior provoca sucessivos momentos negativos, há uma recuperação de dignidade, do lado do pai, quando se encontra no objetivo de ajudar Júlia. A depressão dela salva-o. Ele volta a sentir-se útil. É um sinal que a esperança está no olhar sobre o outro?
Acho que o filme acaba em suspensão, em interrogação. Talvez que por cordões invisíveis, cada um esteja ainda a cuidar do outro. Todos são humanos e estão confusos, o que é normal naquelas circunstâncias. Penso que tem sempre que haver esperança, mesmo quando não a vemos, ela está sempre escondida em algum lugar, e às vezes um quase nada, faz uma diferença enorme.
No final, todas as personagens mudam de lugar (inclusive fisicamente), há até uma falsa neta, mas tal resulta em alguma esperança e conforto. Quando já não se sabe o que fazer, o melhor é baralhar e voltar a dar? Independentemente de tudo, o que faz falta a todas estas personagens é um pouco de colo?
Sim, talvez um pouco de colo, e de direito ao silêncio, à pausa, à reflexão. Quem sabe isso era o quase nada que faria uma grande diferença.
Como fez a pesquisa para o filme? Socorreu-se de histórias reais?
Fiz uma pesquisa curta. Este problema estava um pouco por todo o lado. Falei com algumas pessoas que perderam o trabalho. Conversei com psiquiatras, o que foi muito importante. Visitei um ou outro lugar onde as pessoas iam pedir ajuda.
Nos tempos mais recentes vários filmes portugueses têm abordado a crise. Considera que é um bom sinal que o cinema português esteja tão próximo da atualidade e da realidade em volta?
Não tenho opinião sobre isso. Vejo o cinema como uma arte, e um artista não pode estar programado para fazer isto ou aquilo. Faz o que sente e o que precisa fazer. Acredito que quanto mais honesto for consigo próprio, mais honesto é com a sua arte e com toda a gente que a for ver. O cinema é uma arte vista por muita gente, o cinema português é visto em todo o mundo com muita atenção, a arte é uma grande responsabilidade. Temos que ser sempre muito exigentes para connosco próprios e só assim respeitamos a nossa arte e as pessoas que a veem. E por isto tudo, não posso dizer se os filmes de cada um, devem ser assim ou assado.
Hoje há sinais de retoma económica e também social. Tem fé no atual quadro político português?
Temos que estar sempre muito atentos, vivemos uma época de extrema complexidade, de avanços e recuos simultâneos. Mas em relação a Portugal preocupa-me a ideia de que tudo vai já bem. Há muita gente que ficou para trás, e não se pode esquecer isso. Mas é engraçado porque dá quase a sensação de que Portugal é o único país que está a andar para a frente. Precisávamos respirar um pouco, e ter esperança já é muito bom.
Já está a preparar um próximo filme?
Estou a acabar de montar um filme, uma longa metragem de não ficção. Não sei se é bem um documentário. Comecei em Portugal e acabei em Itália, e trata também da família, mas este é alegre.