No teatro do século de ouro português verificam-se algumas ligações entre autores e obras muito curiosas. Jorge Ferreira de Vasconcelos e Luís de Camões e as suas respectivas obras dramáticas, Eufrosina e Filodemo são exemplo dessa peculiar relação.
Vejamos: A Comedia Eufrosina conta a história dos amores do jovem Zelótipo, moço de câmara do rei, por Eufrosina, donzela, bela, nobre e rica. Escudeiros, alcoviteiras, moças do rio, estudantes, fidalgos e outros, dão corpo e voz a uma utopia optimista, reflectida no espelho encantado das águas do Mondego, onde a razão e o amor prevalece e tudo acaba em bem, e em bodas, como compete a uma comédia. A obra foi escrita em Coimbra, por volta de 1542-1543 e, representada segundo parece, num claustro dessa cidade. Foi publicada em 1555.
O Auto do Filodemo, ou Comedia de Filodemo, pois das duas maneiras aparece designado, é uma das três obras teatrais atribuídas a Camões. A história começa “nos reinos da Dinamarca”, onde um fidalgo português, se tomou de amores por uma filha d’el-rei. Como ela engravidou, “foi-lhe necessário fogir com ela em ũa galé”. Quando chegaram às costas de Espanha houve um naufrágio onde morreram todos, não sem que antes a princesa tivesse dado à luz dois filhos, um rapaz e uma rapariga, que criados por um pastor, vieram a protagonizar duas histórias de amor, sendo uma delas os amores de Filodemo com Dionisa. Este Auto, celebrando igualmente o direito ao amor entre desiguais, é escrito em verso e em prosa, e foi representado em Goa, em 1555.
A relação intertextual entre a Eufrosina e o Filodemo, tem sido objecto de alguma atenção. António José Saraiva em 1962, refere que o Auto de Filodemo, manifesta “a flagrante influência da Comedia Eufrosina e que “Camões só poderia ter conhecido a Comédia em manuscrito ou representada, e mais facilmente em Coimbra, no meio estudantil, onde a obra foi escrita e certamente dada a conhecer, do que em Lisboa”. Vanda Anastácio, na sua edição do Teatro Completo, reconhece na estrutura formal do Filodemo, a interferência de outros modelos dramáticos, para além do auto peninsular, como a Celestina e a portuguesa Eufrosina, indicando nesse seu prefácio ao teatro de Camões uma série de relações entre as duas obras. Isabel Almeida, no artigo Cores de uma manta do Alentejo – notas sobre o texto do Auto do Filodemo, publicado em 2004, relembra o estudo de Eugenio Asensio, onde o lusitanista sublinha a dívida deste auto de Camões em relação à comédia de Vasconcelos, seja pela “afinidade essencial da intriga” ou pelas similitudes na caracterização de personagens basilares e suas relações que, “provam à saciedade a ligação estreita existente entre ambos os textos”, simultaneamente geradora de vínculos, como também de discrepâncias.
No Dicionário de Luís de Camões, de 2011, no verbete “Jorge Ferreira de Vasconcelos”, assinala a autora deste artigo que “o texto dramático de Camões era terra conhecida, a partir da experiência de leitura e representação da Eufrosina.” No entanto, a percepção de um paralelismo entre estas duas obras havia nascido, não de um estudo académico a priori mas, de um convívio estreito no palco com estes dois textos. Em 1995, havia encenado a Eufrosina na Igreja do Convento dos Inglesinhos e, agora um ano depois, encontrava-me no mesmo espaço, a braços com uma dramaturgia, a partir da Lírica, das Cartas e do Teatro a que chamei Camões – tanta guerra, tanto engano, concebida em forma de monólogo, dueto, trio e quarteto, numa liturgia da palavra pensada a quatro vozes que foram habitando o espaço e cerzindo uma trama que começaria com a representação de excertos do Filodemo.
Pela linguagem, pelas personagens e pela situação dramática, dei-me conta que as Cartas e o Filodemo remetiam para o texto da Eufrosina. Por exemplo, o triângulo formado por Zelótipo, Eufrosina e Silvia de Sousa, da comédia de Vasconcelos, interpretados, respectivamente por Júlio Martín, Isabel Fernandes e Silvina Pereira, eram aparentados com as personagens Filodemo, Dionisa e Solina. Mais, dir-se-ia por vezes que se tratava quase das mesmas personagens e era muito intrigante redescobrir nas figuras de Camões as personagens de Vasconcelos.
E, é curioso, pensar que se a representação do teatro português renascentista fosse uma prática usual, o público e a crítica especializada, poderiam descobrir um mundo de sintonias que em termos imediatos mais não são do que a voz e corpo teatral da dramaturgia portuguesa, que é bem mais interessante e inquietante do que se julga.
E foi assim, que no lugar onde no ano anterior se tinham representado os diálogos da Senhora Eufrosina, um jardim repleto de laranjeiras em flor, criado cenograficamente por Marco Ferraris, estava agora um palco em miniatura, criado pela saudosa Maria João Silveira Ramos, para a evocação e representação de excertos do Auto do Filodemo, em ambiente exótico. Dois espaços de fantasia cénica que, apresentados no mesmo lugar, eram a expressão de uma inter-teatralidade nascida de memórias emocionais e estéticas.
E a propósito de espaços, falemos do Convento dos Inglesinhos, ao Bairro Alto, e do seu infortunado destino. Hoje, a Igreja do Convento está desaparecida como espaço religioso e cultural. A ganância e os negócios dos homens, encarregou-se de encerrá-la num condomínio privado e amputá-la de todos os espaços adjacentes: Na missa, como no teatro, há actores e público, há saídas e entradas, há espectáculo e bastidores, sem o qual a magia e a arte não acontecem. Infelizmente, a Igreja reduzida à condição de simulacro, existe, mas sem nenhuma potencialidade. Sansão, sem cabelo e sem força, embora as fotos atractivas com que a pretendem vender, mostrem uma belíssima recuperação, mas que em verdade se pode dizer, não serve para nada e para ninguém.
Voltando a Camões e a Vasconcelos. Duas vidas, dois destinos. É bem provável que ambos na juventude, tenham convivido em Coimbra. Depois as suas vidas seguiram rumos diferentes. Em 1555, Camões está na Índia e dedica a representação do Filodemo ao Governador Francisco Barreto, enquanto Vasconcelos, para quem “não há terra como Lisboa” aí vivia e trabalhava como escrivão do Tesouro de D. João III. Na primavera de 1570, o poeta pobre e doente, e os seus Lusíadas, aportam à barra do Tejo, enquanto o dramaturgo havia recebido a 1 de Janeiro desse ano o cargo de Tesoureiro do Tesouro Real, ao serviço de D. Sebastião. Em 1580, Camões terá morrido numa pobre casa da Calçada de Santana e enterrado em campa rasa, enquanto Vasconcelos, em 1585, jazia no cruzeiro central da Igreja da Trindade, entretanto desaparecida no Terramoto. Por fim, nenhum deles falou do outro, mas Lope de Vega que amava ambos, haveria de considerá-los como dois dos maiores vultos das letras portuguesas.
Camões, no seu Largo, impera altaneiro do seu pedestal de bronze, (e está certo), mas quase apetece, erigir também, o vulto esquecido do elegante e discreto comediógrafo Jorge Ferreira de Vasconcelos. Seria justo e teatral, e o autor da Ulysippo, de que falarei no próximo artigo, bem merece. Mas, como disse Vasconcelos: “Tras um tempo, tempo vem”. E sempre será tempo, de a cidade de Lisboa, reconhecer e agradecer ao seu maior dramaturgo.
Silvina Pereira