É fácil esquecer isto hoje, mas as tiras de banda desenhada publicadas em jornais norte-americanos foram um fenómeno de massas no início do século XX, uma nova linguagem dirigida sobretudo a uma jovem comunidade crescente de imigrantes com pouco domínio da língua inglesa, e desenvolvida em paralelo com o cinema. Devido à evolução divergente das duas formas há hoje uma tendência revisionista para transformar um fenómeno popular numa cultura elitista de minorias, nem que para isso seja preciso desconstruir e reinterpretar de acordo com as conveniências. Nada que não tenha também sido feito, necessariamente a outro nível dada a sua projecção contemporânea, com o cinema. Cada época tenta transformar aquilo que deu sentido à sua formação em algo Maior, alguns artesãos têm obrigatoriamente de ser Autores. Porquê? Porque, que diabo, tudo aquilo TEM de ter tido um significado que transcenda o que era evidente na altura, não é? Não se pode apenas ficar com a herança dos antepassados a este nível; tem de se repetir o que estes fizeram com Homero, Shakespeare, Camilo, John Ford. Não chega divertimento, emoções, crítica e análise sócio-psicológica sublimadas, reflexos de História, contar histórias, Arte. Não, tudo tem de ser A-R-T-E! Analisada até, de preferência, deixar de fazer sentido. Torna-se cansativo, e tenho obrigação de o saber: participo muitas vezes da mesma festa, não estou só de fora a mandar bocas.
Felizmente há Dot & Dash (Libri Impressi). A edição meticulosa de Manuel Caldas (www.manuelcaldas.com) reúne as curtas BDs publicadas por Cliff Sterrett entre 1926-28, não como tira principal, mas como complemento, uma espécie de cabeçalho à obra mais associada com o autor, Polly and her Pals. Dot & Dash segue as aventuras mudas de dois animais (primeiro um cão e um gato, depois dois cães) que exploram o seu mundo, aprendendo e surpreendendo-se a cada instante. Nas vinhetas cruzam-se instintos e emoções primordiais (mas passageiros), sobressaltos e movimentos bruscos (mas circulares), pequenos poemas de serenidade conquistada ao medo. O que chama a atenção é o modo com Cliff Sterrett cruza as convenções da representação desenhada com a “realidade”, e joga com o tempo, esticando-o ou condensando-o no espaço (uma lâmpada pode demorar três vinhetas a cair de um banco, uma gato sobe um poste no espaço entre duas).
O problema de Dot & Dash é equivalente às suas virtudes. Há limites para o que se pode dizer com o formato, e a repetição cedo se torna uma constante. Não só porque na sociedade moderna já não há tempo para escutar com atenção os ruídos da Natureza (ou, noutro contexto, para ler um livro “só com letras”). Por vezes é preciso admitir que tais momentos contemplativos podem resultar numa grande seca; o bom não invalida necessariamente o mau. Dot & Dash foi um excelente divertimento não pensado como “leitura” seguida, e que urge redescobrir lentamente no seu silêncio, uma sequência de cada vez. Mas tentar transformar a tira na obra-prima que não é, na obra principal de Sterrett precisamente porque não o foi, como sucede no interessante prefácio e noutras intervenções críticas (formatadas naquilo que é “suposto dizer” sobre uma tira deste tipo), não a favorece. Para não irmos mais longe, o que Dot & Dash tem de intemporalidade e inovação é sintetizado muito depois (com achegas importantes de Krazy Kat e Peanuts) no superior Mutts de Patrick McDonnell.
Esta é mais uma BD em papel editada por, em essência, uma só pessoa. Com a inteligência de usar tiras mudas numa edição “trilingue” (português, castelhano e inglês), sem a concessão de tentar um formato mais fácil em termos de manuseamento e prateleira. O formato é o que o livro pediu, não o que lhe foi pedido. Nos dias que correm é quase uma loucura. Mais uma loucura que se admira e agradece.
Dot & Dash. Argumento e desenhos de Cliff Sterrett. Libri Impressi, 40 pp., 16,50 Euros.