65. Disse o Profeta:
É mais sábio perguntar
do que responder.
De tão falsos parecem verdadeiros. Talvez os livros de Afonso Cruz (AC) sejam assim. Textos apócrifos numa época em que tudo é permitido. Histórias marginais num tempo que deixou de ter centro. Interrogações feitas numa sociedade obcecada com respostas. Mas isso pouco lhe importa. De livro para livro, o escritor que é também ilustrador e que é também músico tem vindo a criar um universo único. E o romance Para Onde Vão Os Guarda-Chuvas, que chegará às livrarias portuguesas no próximo dia 17, com a chancela da Alfaguara, só vem confirmar esta sua apetência. Nada mais que três livros dentro de um único livro, incluindo uns quantos Fragmentos Persas de sua lavra que, noutro milénio, teriam feito dele um profeta de uma religião exclusivamente literária. São máximas, aforismos e parábolas que usamos como guia para esta conversa sobre perguntas que podem quebrar ciclos. E conduzir-nos a outras perguntas. Como uma porta que abre para outros mundos.
49e. O Bem e o Mal são um nó que a razão jamais saberá desatar.
Certo dia, um hindu foi falar com Gandhi. Levava nos braços o filho morto, vítima de um ataque muçulmano. Dano colateral de perenes rivalidades, preço demasiado alto a pagar por inexplicáveis querelas religiosas. Desesperado, o pai, o homem, o ser humano perguntou a Gandhi: “O que devo fazer agora?”. Como defensor da não-violência, o grande líder do movimento de independência indiana, e não só, respondeu: “Agora, tens de adotar uma criança muçulmana”.
Desde que se deparou com esta história, AC nunca mais a esqueceu. Perdeu o rasto ao livro em que pela primeira vez a leu, mas o ensinamento que dela extraiu não o abandonou. “É uma história muito bonita”, afirma. E suficientemente forte para moldar o seu novo romance.
O que mais o tocou foi a vontade, expressa por Gandhi, de quebrar “a corrente do ódio”. E iniciar qualquer coisa nova. “Somos feitos de rotinas e sem nos apercebermos tornamo-nos automatizados”, diz. “É a verdadeira roda do Karma: um ciclo do qual não conseguimos sair”. Nada disto, porém, tem de ser uma fatalidade. O que Gandhi faz neste inesperado conselho, sublinha o escritor, é chamar a atenção para a possibilidade de contrariar o que parece destinado a acontecer. “São em momentos como este que podemos dizer que o homem tem o poder da decisão.”
Talvez nada esteja escrito e nada seja inevitável. E podemos sempre conhecer o Outro. Ao fim e ao cabo, essa é a lição de Gandhi, como será também a das personagens de Para Onde Vão os Guarda-Chuvas. “Para interromper o ódio não é preciso adotar uma criança”, lembra AC. “Mas ao fazê-lo esse pai hindu pôde compreender melhor os muçulmanos, tal como o filho muçulmano pôde entender melhor o pai hindu.” A aprendizagem é mútua. E ainda há a possibilidade de ser devolvida à sociedade. “Se um muçulmano pode tornar-se hindu, as fronteiras esbatem-se”, adianta. “E ninguém poderá apontar: tu és isto, tu és aquilo”.
Sabe que há aspetos positivos e negativos nesta identidades híbridas e indefinidas, mas não deixa de reconhecer que esta é uma das poucas mais-valias da Globalização. “Se não ficarmos presos a uma única identidade, podemos absorver outras culturas e isso, sim, é muito importante. Escolher o que gostamos e o queremos de cada cultura é criar algo verdadeiramente único”.
É precisamente isso que AC faz ao beber na fonte de muitas conceções do mundo. Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é resultado dessas mundividências, que se espelham em todas as personagens. Glosando a história de Gandhi, o escritor leva um pai, que perde um filho, a adotar uma criança norte-americana, num gesto ainda mais radical. “Num certo sentido, muçulmanos e hindus estão quase em pé de igualdade. Mas um pobre a ir ao primeiro mundo adotar uma criança tem um alcance quase épico”.
E tem mesmo. A demanda de Fazal Elahi irá alterar profundamente a sua vida e de quem o rodeia. Sendo muçulmano, passará a conviver com um cristão, que terá de ser educado segundo os ensinamentos da Bíblia. E ao leque de personagens, junta-se ainda Nachieketa Mudaliar, um hindu apaixonado por uma seguidora do Corão, e Badini, um dervixe místico que, embora mudo, fala em verso.
Ao correr das páginas, estas personagens, como o leitor, talvez se apercebam, como sugere AC, que “o Mal existe em muitos mais lugares do que o Bem”. E só a vida, que tudo une, pode dar o nó certo a essa inevitável união.
387. A verdade é um conjunto infinito de mentiras.
A culpa foi da barba. O aspeto de AC, não andava muito longe de um muçulmano qualquer. Pelo menos foi o que a sua professora de hebraico pensou. Há já algum tempo que frequentava as suas aulas particulares, por curiosidade e interesse no conhecimento que aquela língua e cultura encerram. O caso não seria grave. Uma mera questão de estética, uma estranheza que a professora poderia guardar para si. Mas a certa altura o aluno disse-lhe: “Daqui a uns tempos vou ter de interromper estas aulas porque vou ao Paquistão”.
A senhora, que de português ainda percebia pouco, ficou com a ideia exatamente contrária. “Pensou que eu era paquistanês”, conta AC, “um muçulmano que tinha como missão matá-la”. Não foi a própria que lhe disse, mas uma amiga que também frequentou as mesmas aulas. Contou-lhe que a professora antes de cada sessão se preparava para o destino que lhe estava reservado, rezando ou quem sabe meditando sobre o sentido da vida. “Mas mesmo pensando tudo isso de mim”, nota o escritor, “nunca deixou de me receber”.
Com esta história, o Paquistão tornou-se um país ainda mais mítico para AC, ele que durante anos sonhou em visitá-lo. Chegou a reservar um bilhete, mas só conseguiu garantir a viagem de ida. Havia poucos voos na altura. Ficou à espera até ao último dia, já que os compromissos profissionais exigiam um regresso a curto prazo. Acabou por não ir, o que aumentou ainda mais o desejo.
O Paquistão é, aliás, um dos poucos países naquela região que ainda não visitou, ele que durante anos se dedicou à deambulação pelo mundo. Beneficiando das interrupções do cinema de animação, por onde começou profissionalmente, viajou pelos quatro cantos do mundo. Mas nunca aonde mais queria ir.
Conhece, contudo, a Índia, o Nepal, o Irão e muitos outros países muçulmanos e hindus. E foi com essa experiência que empreendeu esta viagem literária. Como quem recolhe muitas mentiras para criar uma verdade.
Não quer isto dizer que Para Onde Vão os Guarda-Chuvas se passe efetiva e exclusivamente no Paquistão. Esse será, sem dúvida, o país que mais se lhe aproxima. E o escritor explica porquê: “Partindo da história do Gandhi, mas querendo associá-la também à América, o romance tinha muitos requisitos geográficos. Tinha de ter um país muçulmano, proximidade com o hinduísmo, presença de tropas americanas e influência da cultura persa”.
Na impossibilidade de uma localização perfeita, AC prefere a designação de “Oriente efabulado”. Até porque foi sempre isso que o motivou nas muitas viagens que por lá realizou. “Na ingenuidade do final da adolescência, sonhava poder ver o que se calhar ninguém até então tinha visto”, confessa. Também motivado pelas leituras que o fascinavam, viajou para encontrar. “Quis ver em primeira mão”. A mentira literária é, hoje, a melhor forma de relatar a verdade que viveu no corpo.
758. E para guardar a Sabedoria dos séculos, construiremos uma biblioteca redonda, com um labirinto lá dentro.
Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é um dos livros que assinalam em 2013 os cinco anos de vida literária de AC, que se estreou com A Carne de Deus, seguramente o menos ‘afonsino’ dos seus livros, tal como a Enciclopédia da Estória Universal será porventura o mais ‘cruziano’ de todos. A sua marca.
Se não haverá comemorações oficiais, há pelo menos uma festa de livros. Em fevereiro passdo, durante as Correntes d’Escritas, AC lançou mais um tomo da Enciclopédia, os Arquivos de Dresner. Em março, saiu O Livro do Ano, um pequeno e poético álbum ilustrado sobre o dia-a-dia de uma jovem. E agora outros três. Além do romance, uma peça de teatro, O Cultivo de Flores de Plástico, e um livro infantil, Assim, Mas Sem Ser Assim (ver caixa).
Por se tratar de uma data especial, o escritor guardou algumas surpresas. Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é um verdadeiro livro interativo. Não só porque a leitura oferece ao leitor outras experiências, com frases que caminham na página, desenhos que surgem inesperadamente e fotografias que reforçam o ambiente. Mas também porque da tiragem inicial de 5 mil exemplares dois são completamente diferentes dos restantes. Estes terão, respetivamente, uma edição diurna e noturna. E para perceber se lhe saiu um dos dois exemplares únicos e irrepetíveis (não serão impressos em futuras reedições) o leitor não terá de comprar vários livros. Basta que ao longo do romance se depare com a capital da Turquia, numa das muitas demonstrações de sabedoria geográfica de Isa. Será então um dos felizes contemplados.
A interatividade, porém, não se fica por aqui. Sendo um livro sobre a perda, AC interpela o leitor: “Não sei se existe quem saiba lidar com a morte de alguém que lhe era importante, mas se, à semelhança de Fazal Elahi, quiser ou tiver necessidade de dedicar uma carta, um texto, uma fotografia ou um desenho a alguém que perdeu, poderá fazê-lo”, diz o escritor numa nota final, na qual remete os leitores para a página de Facebook do livro. E acrescenta: “Não sei se os verdadeiros destinatários destas mensagens as lerão, mas talvez todos aqueles que vivem perdas semelhantes possam assim sentir-se acompanhados”. Tendo passado pelo mesmo, pode afirmar: “Há um certo pudor em relação à morte, como se a palavra trouxesse com ela uma desgraça”.
Com tantos livros não espanta que o escritor esteja a ganhar terreno ao ilustrador, hoje apenas ao serviço da sua própria escrita (e das suas crónica no JL), e ao músico, apesar dos muitos concertos que tem dado com a sua banda, os Soaked Lamb.
Quando hoje lhe telefonam é com o “escritor Afonso Cruz” que querem falar. A pessoa é a mesma, mas o estatuto parece ter mudado. De resto, sentiu o mesmo dentro de si. Gosta tanto de escrever, quanto de ilustrar, mas há uma diferença: “O que tenho a dizer com o texto é, para mim, muito mais importante do que posso eventualmente transmitir com as ilustrações”. A sua biblioteca, já com 13 títulos, será sempre de palavras.
213. Faremos com que a coisa mais simples seja a coisa mais complicada de fazer.
Começou por ser um conto mas o tempo fermentou-o até ao romance. “Este foi o livro que durou mais tempo a escrever”, garante. Teve-o na gaveta durante cerca de três anos. O problema é que a gaveta nunca esteve fechada. De tempos a tempos lia o manuscrito, modificava qualquer coisa, reescrevia. E o que foi pensado para 100 páginas acabou em 600. Um romance de fôlego.
Na verdade, na sua escrita tudo se resume ao tempo. “Não tenho dificuldade em largar um livro, mas se ele me fica nas mãos vai inevitavelmente crescendo”, afirma. Para reforçar a tese, diz até que estava contente com a primeira versão. Mas depois vieram outras leituras, outas ideias, outras imagens, um sem fim de novidades que podia eventualmente usar. O essencial, contudo, nunca mudou.
Quando se lança na escrita já tem a história bem vincada na cabeça. No romance, nada se perde e tudo se transforma, como não podia deixar de ser, mas os ensinamentos do cinema ficaram enraizados no seu método de trabalho. “Na animação faz-se logo o primeiro e o último desenho, para se saber de onde se parte e para onde se vai”, explica. “De outra forma, o fim poderia não ter nada a ver com o princípio. É preciso delinear um caminho”. Nos livros também.
Apesar de não chegar ao ponto de replicar no texto o que fazia no desenho, quando começa a escrever já tem uma noção da divisão em capítulos, normalmente curtos. “A partir desse momento posso enriquecer a história com tudo o que surgir pelo caminho”. Este romance não foi diferente.
Para Onde Vão os Guarda-Chuvas começou por ser um projeto de três livros distintos, a vender numa única caixa. Teria um volume infantil, outro juvenil e finalmente um romance, tudo à volta das mesmas personagens. Chegou também a pensar numa banda desenhada para um dos segmentos da história e a equacionar outras hipóteses. E entretanto o livro crescia. Ficou num único volume, é certo, mas mantém a ideia dos três livros. O primeiro capítulo é um livro infantil autónomo. O grosso do romance é a história de Fazal Elahi e a sua tentativa de quebrar o ódio. E, a fechar, está a recolha que Teóphile Morel (nome familiar dos leitores da Enciclopédia) fez dos tais Fragmentos Persas.
Além do tema, a simplicidade também une estas abordagens tão diferentes. “Cada vez gosto mais de evitar complicações para dizer determinadas coisas”, garante. “Para o texto continuar bonito não é preciso nada disso, nem ir atrás de adjetivos ou de florestas luxuriantes”.
Tal como as soluções formais que usa apenas quando são pertinentes, o mais importante é contar. “É para isso que escrevo: para falar das coisas que penso e gosto, não tanto pela técnica da escrita”, assegura. “Num livro valorizo tudo, mas se tivesse de ir abdicando, a última cedência seria o conteúdo”. Podia até acabar a escrever um ensaio, mas prefere a tradição Oriental de esconder um ensinamento numa história.
8. Disse o profeta: Um homem, quando aprende, não fica a saber mais. Mas fica a ignorar menos.
Falar dos livros de Afonso Cruz é, como se vê, falar também de religião. Basta recordar o título do seu anterior romance, Jesus Cristo Bebia Cerveja, para o assunto ficar ainda mais evidente. O tema, no entanto, não se deve a nenhuma crença fervorosa, antes ao seu gosto de entender o mundo. O que pode acontecer pelos caminhos da religião, como pelos trilhos da filosofia.
E sempre foi assim. “Não me lembro quando começou”, diz. Mas lembra-se de ser jovem e começar a prestar uma atenção especial às perguntas que inquietam qualquer adolescente. Quando às suas mãos foi parar um livro sobre filosofia Zen o deslumbramento não podia ter sido maior: “Foi uma leitura completamente nova”. E uma chave para abrir muitas portas. Inspirado por aqueles ensinamentos, apontou a bússola para outras religiões e filosofias, sobretudo Orientais, a par dos pré-socráticos e platónicos. “Há muitas maneiras de imaginar e pensar Deus”, afirma. “E cada uma traz-nos sempre alguma coisa de diferente, até na própria conceção do divino”.
No fundo, é isso que o entusiasma. “Gosto de compreender as coisas, encontrar novas interpretações”. O que tanto se aplica às questões mais existenciais, quanto à leitura de um livro ou ao acorde de uma guitarra. Daí a sua paixão por comparações, analogias e metáforas. Para si, não basta contar uma história. Convém acrescentar uma ou outra interpretação. E o objetivo nunca é esgotar o assunto, antes abrir possibilidades. “É como a história de Adão e Eva. Se formos ao significado das palavras, Adão quer dizer um pedaço de barro, e Eva, vida. Ao juntarem-se são mais que um casal. São o encontro entre o corpo e a alma”.
O desafio está na capacidade de criar uma obra constantemente aberta, com histórias que se sujeitem a infinitas interpretações. “As obras nunca ficam fechadas se tiverem material para nunca se fecharem”, afirma. “Por mais interpretações que o Talmud faça da Torah, haverá sempre espaço para mais uma”. O mesmo se poderia dizer em relação aos mitos ou à ciência, que tenta encontrar uma única resposta para várias perguntas.
É o que AC tenta fazer em cada livro. Acrescentar ao núcleo da história uma multiplicidade de leituras, notas, apartes e exegeses. “Para crescermos, temos de ir buscar conhecimento a diversas fontes”, afirma. “Podemos ser um ramo que cresce infinitamente até ao céu ou a copa de uma árvore.” No seu caso, a diversidade é uma vantagem. Mais do que certezas, gosta de encontrar “perguntas que respondam a perguntas”. Como a certeza de que:
65d. Não estamos a fazer a pergunta certa se a nossa pergunta tiver resposta.