Os dois primeiros tomos deste projeto extravasam os muros do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Na sua extensão e no valor literário dos textos antologiados, esta é uma importante realização cultural a que não podemos ficar indiferentes.
Com chancela da Tinta-da-China e coordenação científica geral de Helena Carvalhão Buescu, vale a pena sublinhar um facto simples: esta edição, que honra o primor gráfico das edições da Tinta-da-China, conta com o alto patrocínio do Presidente da República e tem, a secundá-la, parceiros institucionais de relevo: da Sociedade Portuguesa de Autores à Fundação Macau, da Comissão Geral da UNESCO em Portugal ao Instituto Camões, do INIC à CPLP, com financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, sem esquecer o contributo essencial da União de Escritores Angolanos. Quer isto dizer que este Mundos em Português – 1 cumpre plenamente os desígnios de uma verdadeira edição lusófona. A heterogeneidade dos géneros aqui convocados dá bem conta do enfoque dialogal (melhor seria dizer polifónico) de que se faz a literatura escrita na língua de Camões. Aquele alto patrocínio da Presidência da República deve ser visto como um sinal político e simbólico que reforça o gesto antológico.
Na introdução assinada pela equipa, pedagógica e empenhada na defesa de um conceito operatório como o de “Literatura-Mundo”, sinalizam-se as coordenadas gerais deste trabalho, pondo em evidência as vantagens de uma antologia desta natureza. É à luz das relações entre as línguas lusófonas na sua diversidade intra e extralinguística, ultrapassando questões fronteiriças e outros constrangimentos histórico-geográficos que estes dois volumes se dão a ler. Uma epígrafe de Claudio Magris coloca a tónica numa questão central: a antologia pode ser lida enquanto género literário. Assim, mais do que reunião de textos provindo de latitudes várias, Mundos em Português é bem o exemplo de como antologiar é fazer literatura e, por esse prisma, estabelece-se que há uma tipologia genética, tant bien que mal, nova, uma vez que a antologia ao afirmar-se como género literário alarga as condições de possibilidade daquilo que poderíamos ver como declaração de princípio: a literatura não conhece limites, é essencialmente poligonal.
Perceber de que zonas de silêncio a nossa literatura é feita (este possessivo reenvia a todas as culturas lusófonas porque compartilham de uma mesma língua) e compreender que há também “zonas silenciadas” na complexa história dos textos em português, eis outra das valências desta aventura. Nesta primeira parte temos as literaturas escritas originalmente em português, contemplando a literatura portuguesa propriamente dita, da Idade Média ao ano 2000, a literatura brasileira, as cinco literaturas africanas lusófonas e outras de outras geografias, como Goa. Com esse gesto, diz a equipa, traça-se uma linha de atuação de ampla e profunda consequência cultural: “O passado colonial deve ser reconhecido como história que atravessa todos os corpos nacionais, na sua espessura cultural e simbólica”.
Ganha com esta posição o modo como interpretamos a complexa relação entre Portugal e o ex-Ultramar. A partir da literatura perspetiva-se sem remorsos ou preconceitos o Outro na sua verdade antropológico-literária. O diálogo que os textos desta antologia estabelecem entre si, obedecendo à primeira das categorias temáticas, “Conflito e Violência”, conduz-nos à constatação de que há um mundo textual plural em português, convidando-nos à leitura das diferenças e à observação das semelhanças entre povos.
Por isso mesmo é que as outras literaturas que com a portuguesa aqui participam não podem ser lidas como “feudos” de uma suposta literatura central. Camões convive com a prosa de Germano de Almeida, a prosa de Amor de Perdição revive na inventividade de Clarice Lispector, penetrante, inquiridora. “Amor e experiência”, “História e Identidade”, “Cartografias da Tradição”, “Literatura e Condição Humana”, “Língua e Variação” asseguram a coesão e coerência destes dois tomos que agora chegam ao mercado. Seguir-se-ão futuros volumes dedicados às Literaturas Europeias, incluindo as clássicas, bem como outros respeitantes às literaturas sul-americana, africana e asiática, comprovando a operacionalidade do conceito de “Literatura-Mundo”, dada a lógica rizomática dos textos compilados.
No limite, se a literatura é esse mundo de mundos que pode alargar a nossa consciência do real enquanto mundo a fazer-se, diga-se que este empreendimento merece bem um lançamento que faça chegar ao maior número de leitores possível uma verdade óbvia: a formação de público mais culto e com noção da cidadania, isso só é possível se edições com esta importância não fiquem confinadas aos corredores das elites políticas e intelectuais. O próprio conceito de “Literatura-mundo” exige essa boa traficância da educação com cultura.
A Antologia Literatura-Mundo de Helena Carvalhão Buescu
Diana Tinoco
Há antologias que marcam uma época, inauguram novas leituras, sugerem muitos estudos. Literatura-Mundo Comparada, Perspetivas em Português reclama esse estatuto, ao propor um olhar panorâmico e planetário da criação literária desde os textos fundadores aos escritores revelados até ao ano 2000. Serão sete volumes (os dois primeiros acabam de chegar às livrarias) com poemas, contos ou excertos de romances de alguns dos mais representativos (e por vezes esquecidos) autores da tradição cultural de língua portuguesa, da Europa e dos outros mundos do mundo. A coordenação é de Helena Carvalhão Buescu. Leia aqui o artigo de António Carlos Cortez
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