Temos vindo a ser alertados para este drama inquietante há vários anos e nenhuma medida se revelou eficaz para a combater.
Nos últimos anos, com a elevada taxa de desemprego, sobretudo entre os mais jovens, e com a asfixia da classe média, que se viu privada de um nível de vida que conquistara, era muito previsível que a situação se agravasse. As licenciaturas e os mestrados deixaram de ser garantia de emprego e foram muitos os que tiveram de deixar o País, depois de verem destroçados os sonhos. Os pais, que tinham conseguido adquirir casa com empréstimos e viajar no verão, deixaram de poder ajudar e alguns vêem agora as suas pequenas empresas sem laborar e em riscos de falência. São aos milhares os pedidos de insolvência, sem conseguirem pagar a prestação da casa, ou sequer as despesas de educação. Os jovens que conseguem emprego trabalham horas sem fim, sem horário de trabalho e sentem que a insegurança lhes rouba o sonho da descendência.
A Pordata vem publicando dados preocupantes sobre o envelhecimento progressivo da população, e indubitavelmente todos intuímos que nos últimos anos a situação se agravou com a seriíssima crise económica e financeira que assolou o País.
Mas as notícias de verdadeiras tragédias vêm de África, do Médio Oriente, do Paquistão. Sabemos que milhares de crianças desacompanhadas chegam à Europa, vindas de África. Fogem da fome, dos conflitos armados, do trabalho escravo.
São de África as crianças vendidas para a pesca no Lago Volta, ou para o trabalho duro nas minas de coltan, no Ruanda, Uganda ou na República Democrática do Congo. Crianças martirizadas, desconsideradas, vítimas de tráfico e da mais cruel exploração.
No Lago Volta, no Gana, trabalham crianças desde os três ou quatro anos, durante mais de doze horas por dia, e muitas delas acabam por morrer, pois são obrigadas a mergulhar para soltar redes, que ficam enredadas no fundo das águas sujas do lago, onde há crocodilos, sendo certo que alguns nem nadar sabem. Também nas minas, quase sempre situadas em zonas de conflitos armados, muitas crianças morrem, devido à perigosidade dos locais, à ausência de segurança e à toxicidade dos minérios.
Li recentemente um artigo no “Expresso” que referia que muitas crianças, na maioria oriundas da Eritreia, Somália, Etiópia, Sudão, Egipto e agora também da Síria, e que chegam à Europa pretendendo livrar-se da quase certa miséria nos seus países, fogem depois dos “Campos” construídos no Sul da Europa e acabam por cair noutras teias igualmente tenebrosas do crime organizado ou das redes pedófilas e até, como suspeita o Comissário de Estado para as pessoas desaparecidas Vittorio Piscitelli, da “abominável prática do tráfico de órgãos”. São relatórios de entidades oficiais ou de organizações credíveis como a “Save the Children” que nos dizem que só em 2013 e até Maio deste ano chegaram à Europa mais de dez mil crianças, metade das quais viajaram sozinhas, e quase sempre sem documentos.
Estima-se que, por ano, fujam dos campos cerca de três mil crianças, que ficam sujeitas a todo o tipo de tráfico, engrossando os números dos mais vulneráveis desaparecidos na Europa.
Todas as pessoas verdadeiramente preocupadas e que sentem empatia por estas crianças, dizem que medidas eficazes teriam de dirigir-se a combater a pobreza nos Países de origem e que as medidas repressivas não resultam. Por isso, costumo dizer que a Convenção sobre os Direitos da Criança foi importante, mas que há regiões do mundo onde ela não vigora, não obstante a sua ratificação, quase universal.
Todos nos lembramos das crianças de Timor, que durante a ocupação não podiam gozar os seus direitos, apesar de a Indonésia a ter ratificado.
E que dizer das crianças curdas, sem terem sequer direito à sua nacionalidade? Privadas de frequentar a escola, proibidas de ler na sua própria língua, como mostra Bahman Ghobadi no seu magnífico filme documental “Um tempo para cavalos bêbados”, que por este filme foi agraciado com a Câmara de Ouro no festival de Cannes, no ano 2000.
Premiado foi também um filme muito comovente da cineasta francesa Laura delle Piane, que mostra como vivem os 13000 refugiados palestinianos do Campo Deisheh na Cisjordânia cujo protagonista, Tamer, um rapaz de onze anos, gostava de ser cientista e todos os dias sonha poder ir ver o mar Mediterrâneo, que apesar de estar a apenas 40 km, não lhe é permitido vislumbrar…
A nossa imaginação não consegue antecipar os horrores por que passam algumas crianças e creio mesmo que corremos o risco do conformismo, se não fizermos um compromisso com a defesa dos Direitos Humanos. Hannah Arendt falava do perigo da “banalização do mal”, que afrouxa as consciências.
Tem passado nas redes sociais um vídeo chocante em que milionários do petróleo, munidos dos seus binóculos, fazem apostas de corridas de camelos. Os jokeys são crianças subalimentadas com três e quatro anos, que vivem em barracões imundos, sujeitos a temperaturas elevadíssimas e que haviam sido comprados por poucos dólares em regiões pobres do Paquistão e do Bangladesh.
A indiferença dos que sabem é sempre a arma dos que torturam, seviciam, sequestram e matam. Daí que tenha de recordar mais uma vez as meninas da Nigéria. Não deve haver dia em que não nos lembremos das cerca de trezentas crianças e jovens raptadas por um grupo armado que lhes nega o Direito a uma existência digna. Primeiro atacam o Direito à Educação, depois roubam-lhes a liberdade.
É por isso que as comemorações de Junho, que queremos seja o mês da Criança, no nosso País, são ensombradas pelos flagelos do tráfico de crianças, dos raptos, das crianças desaparecidas noutros lugares, alguns bem perto de nós.
Contradições de enormes proporções no nosso mundo, em que a prioridade dos poderosos não é a justiça, definitivamente. Claro que nos Países onde há Estados de Direito, as desigualdades, embora aumentem nos períodos de crise, não são tão devastadoras como nos regimes ditatoriais, em que há um completo desprezo pelos miseráveis, que são descartáveis, sem valor algum. Mas sabemos que a desigualdade crescente na Europa não favorece a justiça e não podemos ficar indiferentes.
Por isso, creio que a Recomendação da União Europeia de Fevereiro de 2013 sobre a necessidade de “Investir nas Crianças para quebrar o ciclo da desigualdade” tem encontrado muitas dificuldades de concretização precisamente porque embora se reconheça a importância de garantir bem-estar às crianças, elas continuam a não representar prioridade nas políticas.
Onde há democracia, há mais desenvolvimento e por isso existe maior preocupação com a repartição da riqueza, mas porque as políticas são sectoriais e não assumem carácter global e integrado, não surtem o efeito desejado. Daí que as medidas sejam inconsequentes e haja cada vez menos crianças, o que é dramático.
As vozes mais pessimistas dizem mesmo que sem medidas específicas dirigidas ao combate do desemprego jovem, sem ajudas e incentivos à sua permanência em boas condições no nosso País, será o próprio futuro de toda a sociedade que ficará em risco, ou seja, não serão apenas prejudicadas as crianças, mas toda a nação, incapaz de projetar-se no porvir. Lembro nos dez anos da sua morte, Maria de Lourdes Pintasilgo que tanto insistia que deveríamos “Cuidar o futuro”. Temos de ser capazes de inverter esta tendência! Denunciando, exigindo, usando o pensamento e a palavra para ajudar as causas justas!