Quando se olha para as suas conquistas, não se imagina que Christine Janin tem pouco mais de metro e meio de altura. No alpinismo, o currículo da francesa de 62 anos é mais do que respeitável: primeira francesa a chegar ao cume do Evereste (1990), primeira europeia a fazer as sete montanhas mais altas dos sete continentes (1992), primeira mulher a chegar ao Polo Norte sem cães nem meios mecânicos (1997). Médica e fundadora da associação A Chacun son Everest, esteve em Lisboa para participar na iniciativa A Noite das Ideias, organizada pela Embaixada de França em Portugal e pelo Institut Français du Portugal, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian. Falou sobre a sua vida à VISÃO, numa conversa com muito altruísmo e também algum egocentrismo.
Para se pôr a subir uma montanha, uma pessoa precisa mais de loucura ou de confiança?
De ambas [risos]. Comecei a subir montanhas porque me propus ser médica de expedições a oito mil metros de altitude. Tinha 24 anos, não tinha cabelos brancos e aceitei fazê-lo apenas porque gostava. Tinha vontade, preparei-me para tal. Fui em frente, atirei-me, insha’ Allah [se Deus quiser, em árabe]. Mas, depois, ainda é preciso existir uma certa loucura porque se começamos a ver se tudo está bem, se está tudo organizado e se tudo faz sentido, não avançamos, não fazemos nada. Também o fazemos exclusivamente por nós próprios, não para os outros. Porque pode até ser perigoso fazê-lo pelos outros. Penso que, quando fazemos este tipo de coisas, acabamos a seguir o nosso coração, a nossa intuição. Na vida, é preciso ousar. Depois, a cabeça está lá para nos dizer quando devemos parar. Se temos medo…
Medo de quê? Medo de morrer?
Medo de tudo. As pessoas têm medo de fazer tudo aquilo que não está nos seus hábitos. É o medo do desconhecido, o medo de ter frio, o medo de não saber, o medo de morrer. Estão sempre com medos.
Apesar de se ter preparado, sabia o que a esperava lá em cima?
Não. Há 30 anos, não havia internet nem telemóveis como há agora. No topo do Evereste, não havia nada, não tínhamos nada. Mesmo os meus pais sabiam que, durante dois meses, não iam ter quaisquer notícias ou, pelo menos, boas notícias… Naquela altura, eu ainda não fazia meditação, nem praticava a consciência plena. Aquilo de que gostava nas expedições era viver o dia a dia, em plena consciência de cada instante e de cada minuto. Caminhamos, comemos, fazemos a tenda. E estamos cientes da nossa respiração, estamos atentos a tudo. E sobre o amanhã, nada sabemos.
Já li que, para si, caminhar é como meditar. Quer explicar?
Andar, respirar, ser. Eu adorava as expedições porque, durante dois meses, elas funcionavam como um parêntesis na minha vida. Não havia problemas, além de andar! Andar, comer, casa de banho [risos]. E tinha um objetivo, adorava a ideia de ter um objetivo.
“Because it’s there”, como disse George Mallory [alpinista que integrou as primeiras expedições britânicas no Evereste, no princípio dos anos 20].
“Porque é que o faço? Porque a montanha está lá.” O objetivo é centrarmo-nos em direção a qualquer coisa. Também uso esta imagem na doença. Às crianças e às mulheres que estão na associação que fundei também lhes digo: “Vocês vão diretamente ao topo e, depois, precisam de descer e de continuar a viver.” Primeiro, uma pessoa precisa de se bater, precisa de se aguentar, precisa de se suster, precisa de andar. E, depois, ainda precisa de aprender a ter paciência, de aprender a respirar, de aprender a esperar. Nestas situações, é muito importante ter um objetivo, olhar para ele.
É mais fácil subir ou descer?
Boa pergunta. É mais difícil subir, mas descer é mais perigoso. Podemos cair e, por isso, a concentração e a atenção na descida devem ser iguais às da subida. E, depois, também existe a questão da descida física e da descida psicológica. No meu caso, depois de subir ao Evereste, eu era a mesma e, no entanto, olhava para as pessoas a partir de outro nível, porque tinha feito um cume. Por isso, digo que também é preciso descer com atenção: é preciso absorver tudo, é preciso transformar, é preciso aceitar. Na doença, passa-se exatamente o mesmo: quando uma pessoa está curada, após ter vencido uma coisa enorme, que muda a sua vida para sempre, também é preciso transformar tudo isso. Estamos orgulhosos, é natural que estejamos orgulhosos, mas ao mesmo tempo precisamos de estar leves, ligeiras.
O Evereste mudou a sua vida, a sua forma de ver o mundo?
O Evereste mudou a minha vida. Após fazer o Evereste, regressei ao dia a dia, à medicina, a tudo. Senti, no entanto, que tinha uma notícia para dar, uma mensagem, um testemunho, senti essa responsabilidade. Fui fazer os sete cumes mais altos do mundo e, depois, quando regressei ao hospital, comecei a dizer aos meus doentes: “Anda, tu vais conseguir.” Senti que tinha essa energia e que tinha a obrigação de a transmitir. As pessoas conseguem fazer coisas que antes julgavam não ser capazes. No caso das crianças, é importante tirar-lhes aquela ideia de serem crianças doentes, é importante que elas possam acreditar que, em vez disso, são crianças conquistadoras.
Hoje, a associação A Chacun son Everest também trabalha com mulheres com cancro da mama.
Sim, há sete anos que também trabalhamos com mulheres. Fi-lo, porque isso permitia-me ter uma equipa a trabalhar durante todo o ano. Pensei que podia ser útil a essas mulheres, mas nunca imaginei quanto. Normalmente, encontro essas mulheres sozinhas, num estado de desesperança total. Estão esgotadas, não são compreendidas, ninguém entende o que elas venceram. Todos acham que acabou – e não acabou. Uma vez chegadas ao topo do seu Evereste…
Precisam de descer.
Isso, descer, transformar. Quando aconselho as mulheres que tiveram cancro da mama, vejo que sentem que ninguém é capaz de compreender o Evereste que elas venceram. A partilha e a conversa permitem-lhes perceber que não estão sozinhas.
Concretamente, que trabalho faz com as crianças e com as mulheres?
A minha associação está sediada em Chamonix-Mont-Blanc. Durante uma semana, decorrem todas as atividades físicas que lhes permitem pôr o corpo em movimento: a marcha, a escalada, o ioga… Seguem-se os espaços de palavra, de entrevista, de psicoterapia. Depois, as massagens, as sessões de meditação, as sessões de alimentação e uma sessão de fotografia, que lhes permitem reencontrar a autoestima. O trabalho que desenvolvemos é uma mistura de muita coisa. No final, fico feliz quando vejo que reencontraram a energia e o sorriso.
Essa é a sua medicina?
Costumo dizer que a minha medicina é a medicina da alma. É esse o remédio do Evereste. Exercitamos o corpo, mas também tratamos da alma. Muitas daquelas mulheres estão cansadas, perdidas, não sabem o que querem da vida, não gostam da profissão nem do marido que têm.
O que lhes diz?
“Reencontra o teu objetivo e a tua vontade. Muda.” Isto é a minha prescrição, o meu tratamento médico.
Transmite-lhes confiança.
Exato, e alerto para a urgência da reação. Trabalhamos a estima, a confiança, o amor. E digo: “Olha para ti. Aceita, vê como és bonita.”
Para si, é mais difícil trabalhar com as mulheres ou com as crianças?
As crianças exigem mais responsabilidades. Com as mulheres, não tenho de me preocupar com as viagens, com a organização, pois são adultas. Por outro lado, no caso das crianças, 99% têm um contexto familiar. Enquanto as mulheres chegam sozinhas e com muita bagagem emocional. As mulheres têm um passado às costas: a doença, a família, a vida social… E tudo isso, por vezes, é catastrófico.
Qual foi a sua maior aventura?
Poderia responder o Evereste, mas não é verdade. A associação que fundei é uma aventura maior. Porque expedições… eu sei como fazê-las, é uma questão de me preparar. A associação A Chacun son Everest fez 25 anos e continua a ser uma experiência muito inspiradora. Mesmo para mim. Trabalho para aquelas crianças e mulheres e, no entanto, esse trabalho também me serve a mim própria. No meu caso, depois do Evereste, também foi difícil. Também precisei de aprender a descer.
No ano passado, foi divulgada uma fotografia impressionante de uma fila de gente que tentava chegar ao topo do Evereste. Lá em cima, há mais egocentrismo ou mais solidariedade?
Quando cheguei ao topo do Evereste, não havia lá ninguém. Posso comprová-lo, mostrar-lhe uma fotografia. Éramos apenas dois e não tínhamos cordas de fixação. Se um caísse, o outro não podia fazer nada por ele. Respondendo à sua pergunta, precisamos da solidariedade do outro, sim, mas é mais forte do que isso: estávamos lá os dois e fizemo-lo juntos.
Se visse uma fila como aquela, também iria?
Não, não iria. Aquela fotografia é a luta, é a querela, é o embate. Tenho um amigo que fez o Evereste nessas condições, há dois anos. Contou-me que havia lá um russo sem oxigénio que lhes pediu oxigénio e que queria ficar com a garrafa dele. Então, esse meu amigo perguntou-se: o que faço? Não tinha escolha, tinha levado o oxigénio sem pensar em partilhar com quem quer que fosse. O que podia fazer?
É um dilema.
Voilà! Tudo é muitíssimo complicado. Uma pessoa não pode ceder a sua garrafa de oxigénio porque, senão, vai-se abaixo. E é evidente que, quando fazemos uma coisa dessas, é preciso ter carácter. E é preciso ter um ego. Eu fui subir o Evereste porque achei que tinha uma missão, senti que devia transformar qualquer coisa. Gosto de dizer que, no meu caso, aconteceu uma certa sincronização de vários fatores. Também tenho o prazer de ir, claro. Mas é um facto que tenho o carácter. Fui para me consertar, para me encontrar, para descobrir o amor e, nomeadamente, o amor do meu pai. No Evereste, pus a minha vida em jogo, mas a verdade é que a vida está sempre em jogo.
É uma pessoa religiosa?
Não posso dizer que seja católica nem judia. Mas acredito numa certa espiritualidade. Acredito que existem anjos, guias, que é possível fazer perguntas às estrelas do céu, ao universo. E é preciso estar grato, é preciso saber agradecer. Gosto de pensar que há energias superiores, que podemos sempre perguntar a alguém, que há coisas que se passam lá em cima. Este é o meu modo de ver as coisas. Na minha opinião, isso dá-nos uma força incrível, porque nos faz ver que nunca estamos sozinhos. Quando, por exemplo, não sabemos se alguma coisa se vai concretizar, gosto de pensar que se essa for correta, ela irá sempre acontecer. Não gosto de Deus, gosto muito de Buda, mas não sou budista. Tenho apenas uma crença numa força maior, acredito que existem forças superiores. Que se qualquer coisa tiver de acontecer, acontecerá.
Na doença, há momentos em que é muito difícil acreditar nisso que diz.
Sim, é verdade, mas, mesmo assim, ajuda. Ajuda muito ver tudo aquilo que temos de positivo. No dia a dia, acabamos por esquecer as coisas boas, destacamos apenas aquilo que não está bem. Há um exercício que faço com as mulheres que estão n’A Chacun son Everest e que pode ser muito útil: identificar quatro prazeres por dia, um sorriso, uma luz, alguém que me ajudou… Quando conseguem identificar esses prazeres, aquelas mulheres deixam de estar centradas na dor, em tudo o que não está bem e centram-se nas coisas bonitas. E é essa firmeza interior que nos alimenta. Agora, também é preciso saber receber – e há pessoas que não sabem receber, que nem um presente, um simples cumprimento, conseguem aceitar.