Desde 18 de março de 2019 que Portugal tem a sua própria agência espacial. O compromisso foi assinado em São Miguel, Açores, região do País que será crucial para o cumprimento da nova ambição nacional. A sede da agência – de nome oficial, Portugal Space – está em Santa Maria, no antigo edifício do diretor do aeroporto. É também a partir dali que serão lançados micro e minissatélites, depois da construção de um porto espacial que deverá estar operacional em 2021. Portugal entra assim no competitivo e exigente mundo da indústria do Espaço, de forma algo discreta, à imagem do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que leva a missão avante, Manuel Heitor. Mas, afinal, quais são as ambições do nosso país nesta área (não esquecendo que, este ano, o curso de Engenharia Aeroespacial do Instituto Superior Técnico teve a mais elevada média de entrada, 18,95 valores, acima dos cursos de Medicina)?
Para presidente da Portugal Space, Heitor escolheu uma mulher, de 40 anos, engenheira aeronáutica de origem ítalo-alemã, que até agora trabalhava ao lado do diretor-geral da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês). Otimista e uma grande entusiasta da exploração espacial, Chiara Manfletti, que até já começa a conseguir comunicar em português, afirma que não hesitou um minuto em trocar Paris por Santa Maria. Afinal, “não é todos os dias que uma pessoa vê nascer uma agência espacial”.
No site da Portugal Space está lá o seu email e um convite para que o cidadão entre em contacto consigo. O que espera desta interação?
Eu defendo que a agência espacial tem de ser aberta. O que estamos a tentar fazer é para as pessoas, portanto queremos saber o que pensam.
Mas a ideia mais comum é a de que a exploração espacial está distante das nossas vidas…
No início era esse o caso, só que o setor do Espaço evoluiu bastante. É bem possível que daqui a 50 anos nem sequer sejam necessárias agências espaciais, tal será a democratização desta indústria, do mesmo modo que não precisamos de agências para andar de avião.
A agência foi criada em março deste ano, mas ainda é relativamente desconhecida dos portugueses. O que se passa?
Bem, eu estou sempre a falar dela aos taxistas [risos]. Penso que, por um lado, não há tanto conhecimento de que o Espaço pode estar presente no nosso dia a dia e de que pode trazer um contributo para a economia do País. E depois há um problema que é muito europeu: não valorizamos o que fazemos. Olhamos para os norte-americanos, para a NASA, mas não temos noção do nosso valor. É aquela ideia de que o jardim do vizinho é mais verde do que o meu. Tendemos a ser mais modestos.
A Portugal Space tem uma natureza diferente das outras agências europeias. Foi criada como um hub. Porquê?
Há vários aspetos que tornam a Portugal Space única. Um deles é o facto de que permanecerá sempre como uma agência pequena. Por exemplo, se olharmos para a NASA ou o CNES [agência espacial francesa], são agências que concebem missões espaciais e constroem equipamentos. Esta não será a vocação da Portugal Space. Vamos ser um promotor. A nossa agência apareceu porque Portugal queria mostrar que está interessado em fazer coisas com a Europa. Não se trata de construir uma agência porque estamos concentrados numa dimensão nacional. Aliás, queremos reforçar a dimensão nacional para podermos fortalecer a dimensão europeia.
Qual será a diferença? Afinal, já fazemos parte da ESA e participamos em projetos europeus.
Pois, fazem-me esta pergunta muitas vezes. Como somos os primeiros, podemos definir o nosso caminho. Não há um documento que diga: um hub da ESA é isto ou aquilo. Temos de ver como a ESA se desenvolveu ao longo dos anos e como o setor evoluiu na Europa. No início, havia a França que, temos de reconhecer, foi muito importante, assim como o Reino Unido, no desenvolvimento do setor europeu do Espaço. Entretanto, as várias nações criaram programas nacionais muito fortes e acontece que nem sempre estamos tão ligados como devíamos estar. A União Europeia interveio, reforçando as ligações entre os diferentes setores, o que é ótimo. Mas como tem havido uma multiplicação de atores e de atividades; temo-nos perdido de vista. Portanto, o conceito do ESA hub não é o de reinventar a roda, mas de fazer coisas de uma forma mais coordenada. E não é que Portugal acabe e comece a Europa. Portugal é Europa e a Europa é Portugal.
O objetivo é muito ambicioso: passar de um investimento de 40 milhões de euros para 400 milhões de euros, em dez anos. Como esperam conseguir isso?
É bom ser ambicioso. Quando estamos dedicados a um determinado objetivo, normalmente as coisas avançam mais rapidamente. É claro que antes tínhamos outras organizações a tratar do assunto do Espaço. Havia a Fundação para a Ciência e Tecnologia, que fez um belo trabalho, mas na verdade é responsável por muitas outras áreas. Como o Espaço é reconhecidamente uma atividade singular, com objetivos muito particulares, é importante ter uma entidade centrada nestes assuntos. Há uma grande vantagem em podermos dizer: temos uma agência espacial. É um motivo de orgulho!
Pode concretizar, explicando de onde espera que venham os 400 milhões de euros?
Bem, não posso ser assim tão concreta, porque esta é mais uma visão.
Mas o objetivo é muito concreto, é um número!
Sim, é verdade. Mas é também uma visão. Este objetivo foi-me dado pelo Governo. O Espaço é para a sociedade e para os negócios. E isso significa o quê? Significa que o setor privado, e não só apenas no Espaço mas também na indústria naval ou na energia, terá de recorrer cada vez mais à tecnologia espacial para poder ser competitivo e fornecer os serviços de que as pessoas precisam. Energias renováveis, por exemplo. Com boa informação sobre os ventos, a sua orientação e a sua intensidade, podemos programar e otimizar o funcionamento das turbinas eólicas, ligando, desligando, reorientando.
Está a dizer que uma das áreas de negócio será a venda de informação recolhida com tecnologia espacial aos produtores de energia?
Sim. O processo é: temos um satélite, que recolhe dados que se transformam em informação e depois em conhecimento. Este será usado por alguém, seja um agricultor, um pescador ou um bombeiro. Mas o que venderá o setor espacial no futuro? Venderá dados sobre o vento para o setor da energia ou venderá satélites? Uma empresa de navios, por exemplo, estará interessada apenas na aquisição de dados ou terá interesse em ser autónoma e ter os próprios satélites? Para mim, não é apenas um número que queremos multiplicar por dez, mas o desenvolvimento do modelo de negócio.
O que pensa do setor espacial português?
O retorno do investimento, em Portugal, é de um para quatro – num cálculo feito já há alguns anos e para a média. Mas se olharmos para setores específicos, como as telecomunicações, pode ir até 20, e em observação da Terra pode chegar aos 12. Isto está a acontecer hoje. Há 20 anos não era assim. Neste momento estou a começar a conhecer o setor empresarial espacial e parece-me que as empresas estão à altura do desafio. Mas ainda há muito que tem de ser feito. Temos de mudar a forma de fazer as coisas e de procurar novas fontes de rendimento. Somos um pequeno país, com pequenos satélites.
Além do lançamento de satélites, que mais tem planeado para o porto espacial de Santa Maria?
Gostaria de ver a combinação de turismo normal com o turismo espacial. A pessoa podia ir visitar a ilha e depois fazer um voo suborbital. Acho que podíamos explorar esta vertente também.
A ilha é tão pequena… Terá capacidade?
Certo, mas para fazer isso só precisamos de um aeroporto, e o de Santa Maria tem mais de quatro quilómetros. É enorme, é perfeito! Estamos mesmo a considerar ter lá o space RIDER [avião espacial da ESA, que ficará operacional em 2022]. Há muito que pode ser feito.
Pode avançar uma data para o primeiro lançamento?
Temos como objetivo um lançamento até ao final de 2021. Algumas indústrias dizem que é totalmente possível, outras que não. Mas eu acho que é exequível. Estamos a falar de microlançamentos. Teremos provavelmente um lançador vertical, com combustível líquido ou sólido. Em breve, começaremos a receber as propostas submetidas pela indústria.
Será um concurso internacional?
Sim, sim. Não será um concurso apenas para empresas portuguesas.
Que mais-valias terão as empresas portuguesas?
O que descobri, com agrado, foi que muitas empresas se diversificaram e, portanto, têm atividade na área do Espaço, além de trabalharem noutras áreas também. É bom haver cruzamento entre a área espacial e a não espacial. Por exemplo, a Critical Software é muito bem-sucedida no que faz, a nível comercial. O Espaço é apenas uma pequena parte da sua atividade, mas mesmo assim está muito interessada em manter a atividade nesta área. O facto de serem muito bem-sucedidos noutros setores implica que possam trazer esta cultura de rapidez e de eficiência também para o setor do Espaço.
Depois da guerra do Espaço, na década de 60 do século passado, passámos a ter projetos cooperativos. Basta pensar na Estação Espacial Internacional. Em que medida é que processos como o Brexit ou a eleição do Presidente Trump, com o seu discurso de rutura…
Pare, pare, vou ficar deprimida. Percebo o que quer dizer. Mas, sabe, descobri recentemente, por altura da comemoração dos 50 anos da chegada do Homem à Lua, que o Kennedy estava a pensar numa colaboração com a Rússia. Consegue imaginar em que mundo viveríamos hoje se isso tivesse acontecido? O Espaço pode manter-nos juntos. E tivemos um exemplo recente. Mesmo durante a crise na Crimeia, continuámos a enviar pessoas para o Espaço e a trazê-las de volta, com o lançador russo. O Espaço tem uma componente geopolítica muito importante. E é verdade que têm acontecido algumas coisas muito assustadoras, pelo que precisamos de garantir que outras não venham a acontecer. Mas eu acredito que o Espaço será fundamental para nos mantermos todos juntos.
Mas a direção das agências é de nomeação governamental. É o Trump que nomeia o diretor da NASA…
Sim, mas não nomeia o presidente da Portugal Space nem o diretor-geral da ESA. Temos de cultivar uma visão positiva. Continuamos a estar na Europa e podemos continuar a passar uma mensagem positiva para o resto do mundo.