A meditação faz-se quando um homem quiser. Na “prateleira dos frescos do supermercado onde provavelmente adquiriu este livro”, escreve João Villalobos, 51 anos. Fixe o olhar numa “maçã Starking ou Golden”. “Semicerre os olhos e concentre-se na sua respiração. Inspire profundamente visualizando na sua mente o ar que entra pelo nariz. (…) Repita este exercício até se fartar ou ser expulso do lugar por estar a bloquear o acesso aos iogurtes.”
O livro chama-se Terapias, Energias e Algumas Fantasias (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 72 páginas), uma viagem que o consultor de comunicação faz ao mundo das medicinas alternativas – e o ponto de partida para uma conversa sobre reiki, leituras da aura e… Bom, algumas fantasias.
Estas terapias holísticas, energéticas, ou o que se quiser chamar, são as novas religiões, novas superstições ou novas ciências? Vêm com o propósito de ocupar que lugar?
Houve um recrudescimento do fenómeno em Portugal, na segunda metade dos anos 90, e aí a abordagem foi mais religiosa: houve uma aproximação à religião, ou a práticas religiosas, como o budismo. Passados uns anos, o discurso tem mudado, com uma aproximação muito maior a termos e a ambientes da Medicina. Os praticantes apresentam-nas como terapias complementares, embora a maior parte das pessoas ainda use o termo “terapias alternativas”.
Porquê essa insistência na complementaridade? Porque não confiar a 100% nessas práticas – isso não denota falta de fé?
Quando têm problemas de saúde graves, as pessoas procuram tudo, seja para a saúde física seja para o estado psicológico. E tudo pode contribuir para a solução.
Procuram tudo para encontrar paz de espírito?
Estas práticas dão um efetivo relaxamento. Proporcionam uma grande diminuição do stresse, quando mais não seja porque estamos estendidos numa marquesa a ouvir música relaxante.
É esse efeito de relaxamento que explica o estudo do Hospital de Santo António, segundo o qual os doentes que receberam reiki tiveram mais melhorias do que os outros?
Quem faz reiki procura oferecer nos hospitais uma prática que complemente e dê tranquilidade a quem a procura. Não estou a opinar sobre o estudo. Daí que o contraponto no livro seja feito pelos divulgadores de ciência David Marçal e Carlos Fiolhais, que desancam o estudo do ponto de vista científico.
Estas terapias estão a conseguir ocupar o espaço da Medicina?
Neste momento, temos uma exposição sobre medicina natural na Biblioteca Nacional. Também recentemente tivemos as notícias sobre o aumento de praticantes da medicina tradicional chinesa. Há muito mais pessoas a recorrer a este tipo de coisas, mas muitas delas não o dizem.
Por vergonha?
Em alguns casos, porque ainda não é visto como aceitável que pessoas com um determinado tipo de vida mais convencional recorram a estas práticas.
O aumento de praticantes e crentes nestas terapias energéticas é feito efetivamente em complementaridade? Ou as pessoas deixam de ir ao médico?
Diria que quem pode ver refletido esse efeito serão talvez os psicólogos e os psicoterapeutas.
No caso dos médicos, se as pessoas têm um problema evidentemente físico, não me parece.
Não é suposto as pessoas substituírem uma coisa pela outra.
Parte do sucesso destas terapias advém do discurso do otimismo: se quisermos muito, conseguimos.
Sem dúvida. E também porque as pessoas não têm um tratamento humanizado nos hospitais, quer pela pressão exercida sobre os hospitais quer pela forma como em geral a classe médica age. Não há um tratamento tão individualizado e tão empático. E obviamente isso também tem alguns efeitos.
A medicina é fria e nem sempre nos diz o que queremos ouvir, enquanto estas terapias…
Podemos ver a coisa dessa maneira. Embora haja pessoas que podem recorrer a estas medicinas complementares e ouvirem coisas que não querem ouvir, relativamente a causas ou a hábitos que têm e são prejudiciais. E, tal como um médico, também um terapeuta destes com bom senso diria a alguém para deixar de fumar.
Estes movimentos adotam, muitas vezes, entidades superiores vagas. Os chakras, os humores, a alma, as energias, os elementos. Isto acontece porque quanto mais vago for o conceito mais difícil é negá-lo?
Acho que é mais fácil a crença do que a fé. A fé, no sentido religioso, é absoluta. A crença… Podemos acreditar numas coisas e noutras não. Podemos acreditar em conceitos como os chakras e não noutras coisas. No caso do reiki: podemos acreditar que o reiki equilibra os chakras e não acreditar que consegue curar no espaço e no tempo.
Que sustentação há para acreditar numa coisa e não noutra?
Quem pratica estas terapias acredita em ambas. Mas quem recorre a elas pode ser apenas para resolver esse equilíbrio dos chakras.
Mas, do ponto de vista da sustentação científica, tão válidos são os chakras como a crença de que o reiki cura.
Diria que esta área funciona um bocadinho como um hipermercado terapêutico. As pessoas passam no corredor e, de acordo com o que sentem ser a sua necessidade, vão colocando as coisas dentro do carrinho.
Não é uma escolha racional, portanto. É o que nos apetece no momento.
Tal como a maior parte das outras escolhas. É por recomendação, por curiosidade, porque se conhece um amigo que pratica.
No livro, conta a história de Isabel R., uma terapeuta holística que se queixa de que os clientes diminuíram.
Sim. A Isabel não surge com o nome verdadeiro, porque este não é o tipo de discurso que é suposto os praticantes de terapias alternativas terem. Há muita necessidade de falarem como se estivessem num estado de perfeito equilíbrio… Porque se aquilo que se vende é equilíbrio, e se partirmos do princípio de que o universo retorna o que nós lhe damos… Mas o testemunho decorre de outras coisas: da grande concorrência, do próprio processo de formação, que vai aumentando o número de praticantes, o que faz com que cada um tenha menos pacientes e os preços baixem.
Ainda assim, não era natural que aumentassem, se os resultados fossem mesmo bons? Se eu fosse a um terapeuta destes e isso resultasse, não parava de lá ir, e passava a palavra a todos os meus amigos e familiares.
Mas a recomendação nesta área não é a mesma coisa do que indicar um bom dentista. As pessoas têm muita resistência a dizer que recorrem a isto.
A vergonha preocupa-as mais do que o bem-estar das pessoas de quem gostam?
Não é por aí. No caso deste testemunho, é alguém que gostaria de se dedicar em exclusividade, mas que pelas circunstâncias pode ter de votar-se a outra atividade.
É possível desconvencer os defensores destas práticas com argumentos racionais?
É complicado. Há uma carta do Niels Bohr para o Heisenberg [dois físicos da primeira metade do século XX] em que ele dizia precisamente que o discurso da ciência é demasiado fechado, comparado com o da religião. E podemos substituir religião por estas terapias. Quando as pessoas têm uma crença, não é o discurso racional ou estatístico nem os estudos científicos que vão demovê-las. As crenças destas são baseadas na experiência, em vivências, e essas muito dificilmente serão desmentidas.
Por mais que sejam explicadas pelo efeito placebo [efeito psicológico de uma terapia ou medicamento], por exemplo?
Mesmo que sejam explicadas pelo efeito placebo. As experiências, pelo menos da forma como as pessoas as vivem, contrariam o discurso do efeito placebo. Ou então entram numa interpretação: o que significa o efeito placebo? Funciona? Então, é eficaz. Chamemos-lhe o que quisermos.
Há um documento assinado por oito bispos americanos contra o reiki, com o argumento de que não tem sustentação científica…
Mas também porque abriria a porta a espíritos malignos. Embora eles se foquem mais no argumento da não comprovação, acabam também por dizer que energeticamente é uma prática que pode…
Ou seja, não é verosímil para as coisas boas. Mas para as más…
Sim. É um bocado paradoxal. Há ali também um objetivo de preservar os fiéis num determinado caminho.
Os bispos estão preocupados com a concorrência?
Sim. Para lá disso, aquele comentário que fazem dos riscos do ponto de vista espiritual… A Igreja Católica mantém a figura do padre exorcista. Portanto, a Igreja acredita nos efeitos negativos das entidades maléficas.
Estas seitas religiosas ou holísticas inventam-se, adaptam-se e reinventam-se a si próprias conforme vão evoluindo?
Sim, completamente. Tem havido várias adaptações do discurso, e daí termos chegado à utilização de termos como quântica. Agora há várias terapias complementares que utilizam a palavra quântica, porque as pessoas associam o quântico às partículas: por um lado, à energia; por outro, a coisas que apreendem como verdade, sem aprenderem a sua base científica.
Nunca vivemos numa era com tanta informação e, no entanto, crescem teorias não fundamentadas. Tem isto que ver com o facto de a informação ser mais democratizada do que nunca, em que toda a gente a produz, sem que haja nenhum filtro a separar a boa da má informação? Estamos a recuar na racionalidade?
Sim. Temos o remoinho da internet, onde muitas pessoas, pesquisando por palavras-chave, chegam a um repositório em que há de tudo.
E as pessoas também não vão à procura de informação, da verdade: procuram quem concorde com elas.
Isso acontece muito com o ser humano. Eu tinha um avô hipocondríaco, que massacrava os médicos, um a um, até encontrar aquele que concordava com ele. Todos temos tendência para privilegiar aqueles que concordam connosco.
Foi a várias leituras da aura…
Fui a seis ou sete.
Falaram sempre das suas vidas passadas.
Sim. Uma das componentes da leitura da aura é o relato de vidas passadas que dá lições para a vida presente. Depois é a fase de limpeza energética.
Nada disso é comprovado nem comprovável.
Pois.
As pessoas não põem isso em causa por não ser comprovável?
Achei curioso os exemplos mencionarem comportamentos que estavam, de facto, relacionados com o meu presente. Mais uma vez, voltamos à questão da experiência própria.
Mas essas coisas que fazem sentido para nós são generalidades adaptáveis a muita gente.
Quando chegamos a estes temas, temos de abandonar a vontade da verificação. Querermos que estas terapias sejam verificáveis além da experiência é impossível. E portanto voltamos à questão da crença. Se eu tenho uma experiência que me leva a continuar essa prática, é porque vejo nisso efeitos positivos. Se tentarmos escolher com base em elementos racionais e científicos, acontece-nos com a crença o mesmo que com a fé. Se desejamos ser católicos praticantes ou budistas com base na razão, não vamos lá.
É mais fácil convencer um cético ou desconvencer um crente?
O ceticismo é um estado mais fechado.