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Em meia hora, 140 estudantes espalham-se pelos 30 degraus da escadaria do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Naquela suave e recente manhã, compuseram um poético retrato da Europa unida: jovens loiros, ruivos, morenos comunicavam numa babel de línguas.
São alunos do Programa Erasmus e estão ávidos de conhecer outros usos e costumes, de acrescentar novas palavras ao seu vocabulário, de namoriscar, sair à noite, viver como se não houvesse amanhã. No regresso a casa, levam memórias indeléveis, dignas de se contar feita a devida seleção numa entrevista de emprego, jantar de família ou festa entre amigos.
Há dias, este universo estremeceu, quando Alain Lamassoure, presidente da Comissão do Orçamento do Parlamento Europeu, fez saber que, no budget do programa, existe um défice de 10 milhões de euros. Num comunicado posterior daquela comissão, conhecido na segunda-feira, 15, afirma-se que a situação é ainda mais grave, com a dívida a atingir 90 milhões de euros. “Não recebemos nenhuma confirmação oficial, mas murmura-se pelos corredores que o Erasmus pode estar em risco”, admite Sílvia Santos, responsável pelo programa no Técnico um dos institutos portugueses que recebe mais alunos estrangeiros, 500 só neste semestre. Foi, por isso, escolhido como ponto de partida para mais uma excursão organizada pela ESN Erasmus Student Network, associação europeia com delegações em 40 países.
De mochila às costas e curiosidade no olhar, os 140 jovens, de que acima se falou, vão entrando nos autocarros que os levarão ao Porto. As festas são, aliás, o aspeto mais badalado da vida da “comunidade Erasmus”. Mas conhecer a cultura e a história do país de destino também faz parte do programa. Em Portugal desde setembro, a italiana Elena Boracco, 23 anos, aluna de Medicina, já se tinha aventurado por Lisboa e pelos seus arredores.
Fez um curso de Português e consegue acompanhar as aulas “muito mais práticas e aliciantes do que em Itália “, apesar de ainda ter vergonha de se expressar na língua de Camões.
Da janela do seu quarto, na capital portuguesa, o francês Benjamin Mennesson, de 21 anos, vê o jardim plantado por Joana Vasconcelos no reabilitado Largo do Intendente. Benjamin já conhece a obra da artista plástica lusa, pois, apesar de estudar em Lille, nasceu em Versailles, onde, recentemente, Joana expôs o seu trabalho. Na primeira semana de aulas, voltava para o seu aposento arrendado, naquele belo edifício lisboeta, chocado com os atrasos de 40 minutos dos portugueses.
“Em França, não toleram mais que dez minutos”, conta. Durante um ano, Benjamin será inquilino da Lisbon’s Erasmus Residence, na antiga Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, inteiramente vocacionada para receber estudantes estrangeiros. Em dois prédios consecutivos, a senhoria e anfitriã Mariana Vasconcelos é uma espécie de segunda mãe, gerindo as necessidades de cada um e zelando pela ordem nos 67 quartos, cujos valores de arrendamento vão dos 310 euros aos 420 euros, com água, luz, net, lavandaria, cozinha e casa de banho.
Este mês, já há reservas para 2013.
Mariana Vasconcelos não sente, para já, o impacto da ameaça que paira sobre o programa, que lhe traz a Lisboa 100% da clientela.
“Os estudantes com saídas no primeiro semestre de 2012/13 não terão quaisquer entraves”, lê-se no site do organismo que gere o Erasmus em Portugal, a Agência do Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida. Mas, “se a indisponibilidade de tesouraria persistir, poderá registar-se alguma demora quanto às verbas para os estudantes com mobilidades no segundo semestre de 2012/13”.
O próximo dia 23 é a data agendada para a apresentação de uma solução do problema, que passará por pedir a contribuição direta dos países que fazem parte da comunidade. No entanto, a dúvida, nem que seja metódica, persiste. “Tememos que esta incerteza leve os alunos a desistir das candidaturas”, diz Karina Ufert, 26 anos, presidente da União Europeia de Estudantes.
REVOLUÇÃO SEXUAL
Criado no ano letivo de 1987/88, o Programa Erasmus, de intercâmbio de estudantes do ensino superior entre países europeus, já movimentou 2,5 milhões de jovens, que trocaram um período que pode ir de três meses a um ano numa universidade do seu país pela frequência de uma instituição de outra nação aderente (Estados-membros da UE, mais a Croácia, Islândia, Liechtenstein, Noruega, Suíça e Turquia). Ao longo destes 25 anos, o Erasmus terá feito muito mais pela construção europeia do que qualquer tratado. “Criou a primeira geração de jovens europeus”, analisa o escritor italiano Umberto Eco. “Uma revolução sexual: um jovem catalão conhece uma jovem flamenga apaixonam-se, casam-se e tornam-se europeus, tal como os seus filhos.” João Sousa, 22 anos, não se casou durante a sua estada de cinco meses em Zagreb, na Croácia. Mas ter-se-á apaixonado muitas vezes. “Um dos nossos passatempos preferidos era estar na esplanada, numa rua muito movimentada, a fazer girls watching as croatas são lindas”, conta, divertido. Mas, na memória, não traz apenas a figura esguia e a pele de alabastro das mulheres eslavas. Estudante de Gestão no ISCTE, beneficiou de uma candidatura bem organizada, o que lhe permitiu fazer sete cadeiras fora do País e, ainda, viajar de comboio e de carro até à Sérvia, Bulgária e Hungria. Atualmente a frequentar um mestrado em Finanças, defende que o Erasmus é um incentivo ao desenvolvimento humano, considerado já tão importante como os conhecimentos técnicos. “O que nos distingue é o que somos enquanto pessoas, a forma como agimos perante as situações do dia a dia.” Hoje, nas entrevistas de emprego, é muito comum abordar-se a questão da mobilidade, e possuir no currículo um período de Erasmus revela-se, quase sempre, uma mais-valia.
EM NOME DA EUROPA
Já lá vão duas décadas, mas Inês Guerreiro, 41 anos, lembra-se ao pormenor da sua estada em Bordéus, França. A experiência foi vivida em pleno, numa residência universitária dentro do campus, onde os “parabéns ” eram cantados em várias línguas, em simultâneo. Um pagode que, ainda hoje, a faz rir. “O Erasmus torna-nos mais tolerantes, sábios e sociáveis”, sintetiza.
Espanha, o país que mais recebe e que mais exporta alunos, tomou conhecimento, com grande apreensão, do anúncio de falta de verbas. O empenho no programa é tal que as comunidades autonómicas complementam o bolo que chega de Bruxelas: as bolsas mensais oscilam entre 133 euros, em Espanha, e 653 euros, no Chipre. Em Portugal, rondam os 200 euros/ mês. Uma quantia que mal dá para pagar o quarto. Praticamente todos os estudantes do Erasmus sobrevivem à custa da ajuda dos pais. Só que até este auxílio está cada vez mais difícil. “Tem acontecido os alunos candidatarem-se e depois desistirem, a meio do processo.
Sabemos que é por questões financeiras “, diz Sílvia Santos, do Técnico.
Uma forma de minimizar o problema é escolher países com um nível de vida mais baixo. Foi isso que fez Sara Pereira Faria, 28 anos. Estudante de Comunicação Social, saiu de Abrantes em 2009, durante o último semestre da licenciatura, e rumou a Targoviste, na Roménia.
Pagava 50 euros pelo quarto na residência, almoçava em restaurantes, e ainda conseguiu viajar pelo país. Aprendeu romeno e desenvencilhou-se da cadeira de Sociologia da Comunicação, que, em Portugal, parecia estar engatada.
“O conhecimento das diferentes culturas europeias permite formar o sentimento de nação”, defende José Eduardo Franco, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e autor do livro A Europa Segundo Portugal. “Torna a Europa mais unida, mais próxima.”
FAZER-SE À VIDA
Mesmo que, em alguns cursos ou universidades, os seis meses sejam passados mais em festa do que a estudar, há sempre aprendizagens que ficam: viver sozinho, a gestão de um orçamento, o respeito pelas diferenças culturais. Carlota Cruz Morais, 19 anos, conta, a partir de Istambul, na Turquia, que está a “aprender a ser autossuficiente “. A faculdade não se mostra preparada para receber alunos estrangeiros (algumas universidades portuguesas estão a quebrar os acordos de Erasmus com aquele país, por causa do mau funcionamento do programa). “Aulas é coisa que não tenho”, diz Carlota Morais. Como não deixam de ensinar em turco, os professores acabam por passar meros trabalhos e apontamentos aos alunos estrangeiros.
Ainda assim, e ao fim de um mês de estada, Carlota, estudante de Relações Públicas e Comunicação Empresarial, já aprendeu uma lição: “O meu curso aplica-se em qualquer país, mesmo que a maneira de ensinar seja diferente.” Raquel Santana, 32 anos, tradutora de Inglês/Francês, apenas se aguentou em França graças ao patrocínio dos pais. Um ano na Sorbonne, em Paris, permitiu-lhe ganhar uma maior fluência no francês, muito à custa dos fins de semana passados na biblioteca. Se tivesse de resumir a experiência numa só imagem, recorreria à memória da noite em que um grupo de amigos se juntou sob a Torre Eiffel, enrolados em mantas, na companhia de vinhos e petiscos.
Uma verdadeira comunhão. Numa altura em que o projeto de Europa assenta em areias movediças, não será à força da moeda única nem tão-pouco do recente Nobel da Paz atribuído à UE que se manterá a coesão idealizada pelos europeístas convictos. O Erasmus explica porquê.