Nas paredes da monumental Ala Napoleão do Museu do Louvre, que desde quinta-feira acolhe a exposição que assinala os 500 anos da morte do mestre renascentista italiano, permaneciam na véspera da inauguração dois espaços vazios.
Um deles foi preenchido nas derradeiras horas antes da abertura das portas ao público: “O Homem de Vitrúvio” só na semana passada teve autorização da justiça italiana para ser retirado da Academia de Belas Artes de Veneza, depois da associação Italia Nostra, dedicada à preservação do património histórico e artístico italiano, ter interposto um processo judicial para que a obra não saísse do país, argumentando que poderia sofrer danos irreparáveis com o seu transporte para Paris.
O Tribunal Administrativo Regional de Veneza considerou legal a transferência da obra para França, que havia sido aprovada pelo Ministério da Cultura italiano, tendo contudo reduzido o período de empréstimo ao Louvre a 8 semanas (deveria ficar até ao término da exposição, em fevereiro de 2020).
Esta foi apenas uma entre as muitas dificuldades a superar pela equipa que se propôs produzir a maior exposição de sempre de da Vinci, liderada pelos curadores Vincent Delieuvin e Louis Frank, diretores dos departamentos de Pintura e Desenho do Louvre, respetivamente, que passaram os últimos dez anos a batalhar por empréstimos e a gerir conflitos judiciais e diplomáticos. A mostra tem o Alto Patrocínio do Presidente Emmanuel Macron e várias vezes foi necessária a intervenção do Eliseu nas difícieis negociações com reis e rainhas, ministros e presidentes, magnatas e milionários excêntricos.
São apenas conhecidas cerca de 20 pinturas de Leonardo da Vinci e quem as tem não gosta de ficar sem elas – seja pelo público que atraem, seja pelos receios de que algo possa acontecer a tão frágeis obras-primas. O Louvre é o museu com mais pinturas do mestre italiano, “herança” que recebeu dos reis de França, que acolheram da Vinci em 1516, quando este abandonou Itália, após a morte do seu patrono, Giulano de Medici. “O Louvre detém quase um terço das suas pinturas: aquelas que ele trouxe para França [como a Mona Lisa] foram adquiridas por François I e entraram para as coleções reais, que provavelmente já incluíam “A Virgem dos Rochedos” e “La Belle Ferronnière”, adquiridas por Louis XII. A este excecional conjunto de pinturas, que constituiu o começo das coleções do Louvre, juntavam-se ainda 22 dos desenhos do artista”, explica o museu.
Com este ponto de partida, o Louvre quis assinalar os 500 anos da morte de Leonardo com a maior exposição alguma vez realizada, e passou os últimos 10 anos a tentar fazê-lo. Algumas negociações foram relativamente simples. O Reino Unido garantiu rapidamente o empréstimo das obras do British Museum e da National Gallery (que possui a versão de “A Virgem dos Rochedos” que emparceira com a detida pelo Louvre), e até do conjunto de desenhos pertencentes à Royal Collection, que a rainha Isabel II aceitou emprestar.
Com mais ou menos percalços, firmaram-se acordos para o empréstimo de 22 grandes obras, de instituições como o Museu do Vaticano o Museu Hermitage de São Petersburgo e o Metropolitan, de Nova Iorque. De coleções privadas também há dezenas de contributos, como é o caso do Codex Leicester, um conjunto de manuscritos científicos na posse de Bill Gates.
Já França e Itália estiveram com as suas relações diplomáticas por um fio durante as discussões do acordo para o empréstimo de obras. Afinal, o mestre é italiano, e também os museus do país queriam assinalar de forma grandiosa este 500º aniversário. Algumas obras, como “A Anunciação”, exposta nas Galerias Uffizi, em Florença, estiveram sempre ausentes da mesa de negociações, pois os seus curadores entendem que se encontra num estado demasiado frágil para ser movimentada. Depois de vários anos de impasse, foi firmado um acordo entre os dois países, determinando que o Louvre também emprestará algumas pinturas de Rafael em 2020, quando os 500 anos da sua morte serão assinalados numa grande exposição em Roma, na Scuderie del Quirinale.
Ao todo, estarão expostas no Louvre cerca de 160 obras de Leonardo. Às 11 pinturas juntam-se algumas esculturas e grandes coleções de desenhos, onde se inclui o esboço “Rapariga lavando os pés a uma criança”, pertencente à coleção da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
Mas há um espaço nas paredes da Ala Napoleão que permanece à espera da pintura que ali deveria ser pendurada. Não será “Mona Lisa”, que o Louvre decidiu manter no 1º andar, com receio de tornar impraticável a visita à exposição temporária. “Não foi uma escolha, adorava poder tê-la ao pé das outras obras. Mas ela tornou-se noutra coisa. É um ícone que as pessoas de todo o mundo vêm ver e querem fotografar, recebe diariamente 30 mil visitas. […] Pô-la aqui criaria engarrafamentos incontroláveis e tornaria a visita impossível aos fãs de Leonardo da Vinci”, explicou Vincent Delieuvin.
O espaço vazio está à espera de “Salvator Mundi”, comprado em 2017 por um anónimo num leilão da Christie’s, por 450 milhões de euros, para ser exposto no Louvre Abu Dhabi. Aquela que terá sido a última obra de Leonardo ainda nunca foi mostrada ao público após a sua compra e, segundo o New York Times, estará em “parte incerta”. Mas os curadores dizem que solicitaram o seu empréstimo e, não tendo este sido recusado, mantêm a esperança de que a obra ainda possa chegar a Paris.
Seja como for, aquele pedaço de parede em branco irá manter-se e essa ausência fará também parte da exposição. Talvez para assinalar os muitos mistérios que ainda subsistem em torno do trabalho deste génio da Renascença. Ou para nos lembrar a importância de não desistir, mesmo quando a missão parece impossível.
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