Na madrugada de 26 de abril, uma nuvem de material radioativo atingiu a cidade de Chernobyl, na Ucrânia, alastrando-se depois a outras partes da União Soviética, nomeadamente à Rússia, Bielorrússia, e até ao Norte da Europa. “Quando vi o que tinha acontecido, fiquei surpreendido por eles nos terem levado até lá. O reator parecia tão danificado que não havia nada a fazer”, conta Oleksiy Breus, ex-operador na Central Nuclear de Chernobyl, que trabalhava na sala de controlo do reator 4, precisamente aquele no qual se deu a explosão nuclear, em 1986.
Numa entrevista à BBC Ucrânia, Breus argumenta que a série não é completamente fiel aos acontecimentos, porque tem um objetivo “artístico”. “A catástrofe é descrita de uma forma bastante poderosa, como uma tragédia global que afetou um grande número de pessoas”, mas “há muitos estereótipos típicos do retrato ocidental da União Soviética”, considera.
Será que houve mesmo “vilões”?
Apesar de retratar bastante bem as emoções dos momentos seguintes à explosão, na opinião de Oleksiy Breus, a série peca no retrato do diretor da central Viktor Bryukhanov, do engenheiro-chefe, Nikolai Fomin, e do engenheiro-chefe adjunto, Anatoly Dyatlov.
Os três responsáveis da central foram considerados, em 1987, culpados pelo acidente nuclear de Chernobyl, devido a uma violação grosseira dos regulamentos de segurança. No entanto, Breus considera que “as suas personagens foram distorcidas e deturpadas, como se eles fossem vilões”, e que eles “não eram nada assim”. Segundo o mesmo, Dyatlov era bastante rigoroso, por esse motivo, era por vezes mal interpretado pelos seus subordinados, mas geralmente essa perceção sua mudava com o tempo. “Os operadores tinham medo dele. Mas, por mais rigoroso que fosse, ele era um profissional de alto nível”, sublinha.
Personagens pouco verdadeiras
Segundo o ex-operador da central, a série também tomou a liberdade de criar novas personagens ou alterar o seu papel na história. A personagem Ulana Khomyuk, por exemplo, a física nuclear que procurou investigar a origem da explosão, nunca existiu. A própria atriz, Emily Watson, contou que Ulana era, na verdade, “uma amálgama dos cientistas que trabalharam no desastre”.
Também Valery Legasov, o químico escolhido para integrar a equipa enviada para Chernobyl, e uma das personagens principais da série, não teve um papel tão ativo como foi retratado e trabalhava a maior parte das vezes dentro de um “bunker sob o prédio da administração”.
“[As queimaduras] nunca tinham sido mostradas assim”
Houve, no entanto, pontos positivos. Por exemplo, a caracterização dos pacientes queimados pelas substâncias radioativas.”Muitas pessoas falaram sobre a exposição à radiação, pele vermelha, queimaduras de radiação e queimaduras de vapor, mas nunca tinham sido mostradas assim.” Breu lembra-se de falar com os colegas logo após o acidente e, conta “estavam claramente doentes, muito pálidos”, Leonid Toptunov o chefe do turno “estava literalmente branco” e “de manhã, vi outros colegas que trabalharam naquela noite. A pele deles tinha uma cor vermelha brilhante. Mais tarde, eles vieram a morrer num hospital em Moscovo”, lembra.
Incêndio no telhado? Parece que não…
Segundo Oleksiy Breus, realmente houve incêndios e foram extremamente perigosos para os bombeiros, no entanto, não foram no telhado. “O fogo no telhado é um mito”, diz. Mas é verdade que a tarefa de apagar os fogos era quase impossível, porque “o fluxo de água que os bombeiros despejaram provavelmente evaporou antes de chegar ao reator”.
“A Ponte da Morte”
Uma das cenas mais chocantes passa-se na ponte da cidade vizinha de Pripyat, onde é possível ver crianças brincar com o pó radioativo que caía do céu. Segundo o relato da série, todos aqueles que testemunharam os eventos a partir do local, morreram como resultado da exposição à radiação. Breus conta que conhecia algumas das pessoas que estavam na ponte nessa noite e que, apesar de terem sofrido com os efeitos da radiação, sobreviveram. Para além disso, considera que a maioria dos moradores não se apercebeu do que estava a acontecer até à manhã seguinte.
“No hospital, fui tratado ao lado de um homem que pedalou até à ponte na manhã de 26 de abril. Ele foi diagnosticado com um tipo leve de síndrome de radiação aguda”, diz.
Os mineiros estavam nus?
“Eles tiraram as roupas, mas não como foi mostrado na TV”. “A história dos mineiros foi uma daquelas que se revelaram irrelevantes e desnecessárias”, acredita o ex-operador da central, referindo-se ao episódio em que os mineiros cavam um túnel sob o reator, completamente nus.
O “mártires”
A série conta que três trabalhadores se voluntariam para mergulhar nas galerias inundadas, sob o reator danificado, e abrir uma válvula para drenar a água. Segundo o relato da HBO, os três voluntários sacrificaram a vida para evitar que o desastre tivesse consequências ainda maiores. Mas parece que não foi bem assim, uma vez que Borys Baranov, líder da manobra, morreu em 2005, Valery Bespalov e Oleksiy Ananenko, ainda estão vivos e moram em Kiev.
Ananenko desmentiu também que lhe tenha sido oferecida qualquer recompensa. “Era o nosso trabalho. Se eu não tivesse feito isso, eles poderiam ter me demitido”, conta à BBC. “Eu não me lembro do que os nossos dosímetros pessoais [um dispositivo que mede a radiação[mostraram”, e “isso significa que não foi assim tão mau”, acrescenta.
Estereótipos e mais estereótipos
“Há muitos estereótipos típicos do retrato ocidental da União Soviética: muita vodca, KGB em todos os lugares…”, conta Breus. O próprio Ananenko, não se lembra de ter bebido nada, apesar de aparecer na série a beber vodca diretamente da garrafa depois de completar a missão.
Para Oleksiy Breus, a União Soviética foi representada, de uma forma geral como um regime excessivamente secreto, apontando más práticas de gestão e comunicação como um dos fatores que contribuiu para o agravamento das consequências da explosão.
O governo soviético cortou as redes telefónicas e todos os engenheiros e funcionários da central nuclear foram proibidos de partilhar informações sobre o que desastre, explica o historiador Serhii Plokhii. Contudo, nas horas seguintes à explosão pouco se sabia sobre a extensão do acidente. “Nas primeiras horas e até mesmo no dia seguinte ao acidente, não se sabia que o reator tinha explodido e que tinha acontecido uma emissão enorme de material nuclear para a atmosfera”, contou, mais tarde o próprio Gorbachev, líder da União Soviética na altura da catástrofe.