Sofia Nunes e Ângelo Valente não conheciam a investigação de Dana Klisanin quando criaram uma página de Facebook para contar o que se andava a passar no Centro Comunitário Gafanha do Carmo. Estávamos em 2012, e muitos familiares das pessoas que ali vivem a sua velhice tinham emigrado; a rede social iria servir para encurtar virtualmente as distâncias, ao deixá-los entrever o dia a dia naquela instituição do concelho de Ílhavo.
Os posts da gerontóloga e do animador cativaram logo as atenções de uma comunidade mais vasta, ao ponto de muitos dos vídeos se tornarem virais no YouTube, mas foi três anos depois, ao partilharem o projeto Antes de Morrer Quero, que perceberam o alcance e a importância do “altruísmo digital”. O conceito foi adaptado às redes sociais por Dana Klisanin, professora de Psicologia na Universidade Ubiquity, em Mill Valley, na Califórnia, e as fotografias da sra. Vitória e do sr. Alfredo a bordo de duas avionetas resumem-no bem.
Inspirados no projeto de arte internacional Before I Die, Sofia e Ângelo perguntaram aos habitantes do centro o que gostariam de fazer antes de morrer, e fotografaram-nos com os sonhos escritos em quadros de ardósia. Havia um pouco de tudo, desde andar de avião, ir ao Brasil, sentir a areia da praia nos pés e dar um grande beijo na boca, até pintar o cabelo de azul, comer tripas de vinha d’alho ou voltar ao mato. “O nosso objetivo era criar proximidade e sobretudo desmistificar a palavra ‘morte’”, conta a gerontóloga, “mas, mal publicámos os 24 sonhos no Facebook, o telefone não parou de tocar.” Os sonhos aparentemente mais difíceis, os das viagens, foram logo concretizados. E até chegou uma chamada do Governo de Moçambique, a semear o espanto na Gafanha do Carmo com a frase: “O senhor que venha, tratamos de tudo.”
Pouco ou nada surpreendida com esta resposta em massa ficaria Dana Klisanin, há vários anos a estudar como as interações online podem promover a compaixão e o altruísmo. A psicóloga, que se encontra a escrever atualmente um livro sobre a “boa rede”, defende que as tecnologias da informação estão a beneficiar o mundo e a ser usadas para melhorar a vida humana. E sobre o altruísmo digital chega a sugerir três graus: “altruísmo de dia a dia”, em que as pessoas clicam para fazer uma doação numa ação de solidariedade; “altruísmo digital criativo”, que implica a conceção de um site para ajudar outros; e aquele em que grupos se juntam para produzir algo em prol de um “bem maior” (após um desastre natural, por exemplo).
As redes sociais como o Facebook, o Instagram ou o Twitter são, na opinião de Klisanin, as plataformas nas quais mais facilmente as pessoas se apercebem de que podem fazer a diferença, levando, por isso, a que o altruísmo se torne viral. A psicóloga não é a única a chegar a essa conclusão – Nicholas A. Christakis e James H. Fowler, autores do livro Connected (ligados), também concluíram que o altruísmo é contagioso. “Estudos com pessoas que deram dinheiro para causas diversas revelaram que cerca de 80% fê-lo porque lhes foi pedido por alguém que conheciam bem”, escreveram no site oficial do documentário Kindness is Contagious (A bondade é contagiosa), de David Gaz. Para provar esta teoria, os dois investigadores, professores em Harvard e na Universidade da Califórnia, criaram redes sociais artificiais envolvendo pessoas reais. Ao fim de vários anos de pesquisa, hoje têm a certeza de que “se Jay é generoso com Harla, Harla vai ser generosa com Jay, numa espécie de altruísmo recíproco – e assim por diante”.
O altruísmo nas redes é viral, sim, “mas muitas vezes de pouca duração”, nota por sua vez o investigador Sander van der Linden, diretor do Laboratório de Tomada de Decisões Sociais da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Analisando o impacto do fenómeno da campanha Ice Bucket Challenge (que em 2014 pôs famosos a despejar um balde de água gelada na cabeça com o objetivo de angariar fundos para o combate à esclerose lateral amiotrófica), este psicólogo social explica essa curta duração com a “psicologia do consenso”, que leva ao envolvimento superficial, acionado por motivações mais extrínsecas do que intrínsecas.
Solidariedade global
O envolvimento com o Centro Comunitário da Gafanha do Carmo não será superficial, animam-se por lá. “O facto de termos ido para as redes sociais fez com que as pessoas nos queiram ajudar – e continuam a fazê-lo”, diz Sofia Nunes, avançando alguns exemplos: “Uma empresa que vende leds ofereceu-nos toda a iluminação (estamos a falar em 7 500 euros que se transformaram numa poupança de 30% da conta da luz ao final do mês), a televisão da sala foi-nos dada por um banco e o programa informático por uma empresa do ramo, e todos os oradores na nossa conferência anual Futuridade participam sempre de graça.”
No Natal do ano passado, quando os responsáveis do centro entraram numa loja para fazer compras, tiveram um desconto imediato de 10%, e, logo que agradeceram no Facebook, receberam um telefonema do jogador de futebol Gil Dias a prometer: “Pago as vossas prendas todas.” Mesmo o projeto Antes de Morrer Quero continua a mobilizar a comunidade, conta Ângelo Valente. “Há pouco tempo, foi a vez de o sr. António escrever o seu sonho (voltar a Alvalade) e passado meia hora havia pessoas a ligarem. Hoje, já temos tantos contactos que conseguiríamos sozinhos, mas fizemos tal e qual como há três anos: tirámos uma fotografia com a verbalização do sonho e deixámos que a sociedade respondesse de uma forma genuína.”
A resposta da sociedade também não deixa de surpreender Fernando Pinho, que criou a Organização Não Governamental Projeto Amélia para ajudar a transportar crianças doentes que vivem longe dos hospitais. “Foi através das redes sociais que ele cresceu”, sublinha este português de São João da Madeira que um dia acordou decidido a deixar um legado. Nunca esquecera o sofrimento do irmão mais novo, Vasco, que com 11 anos se viu obrigado a combater o cancro; o facto de possuir o brevet de piloto iria levá-lo até à antiga Birmânia, hoje Myanmar, onde centenas de crianças com cancro morrem por não terem acesso a tratamentos.
Fernando Pinho entrou pela primeira vez no único hospital pediátrico birmanês, em Yangon, há três anos. Menos de um ano depois já estava a ajudar crianças a chegarem lá e, desde então, todos os meses a sua ONG, apoiada pela World Child Cancer (WCC), suporta financeiramente mais de sessenta.
Sediado em Cambridge, no Reino Unido, o Projeto Amélia passou entretanto a chamar-se Please Take Me There (por favor, leva-me lá), acudindo também a crianças localmente e em África. A ligação com o Facebook é quase umbilical: esta rede social deu-lhe uma global page, habitualmente permitida apenas a marcas; e, no ano passado, duplicou todos os donativos recebidos pela ONG a 27 de novembro, dia da iniciativa Giving Tuesday (a terça-feira a seguir ao Thanksgiving).
Fernando Pinho apenas tem medo que a banalização dos pedidos de ajuda nas redes sociais leve a um efeito contrário. “De repente, temos apelos para financiar tratamentos alternativos de 100 mil euros, quando preciso de me sacrificar tanto para arranjar 16,5 euros para ajudar uma criança com cancro a viajar para o hospital e receber tratamento durante um ano na Birmânia. Se eu tivesse 100 mil euros… Esse valor equivale a dez anos do nosso trabalho em Myanmar: seriam cerca de 1 900 crianças que conseguiria literalmente salvar só porque as levaria a um hospital.”
Os ciber-heróis
Não foi esse o caso da página de Facebook Salvar a Vida da Maria. O apelo lançado por umas amigas de Rita Mota e Miguel Rosa, com o objetivo de se encontrar um dador compatível de medula óssea para a filha deste casal de Santarém, não envolvia qualquer ajuda financeira. Maria, então com apenas um ano, fora diagnosticada a 28 de dezembro de 2016 com leucemia mielomonocítica juvenil, uma doença pouco habitual em crianças, de evolução rápida e só curável com um transplante. Rita e Miguel tinham começado por espalhar o pedido através de sms e Whatsapp, mas quando as amigas sugeriram partilhá-lo no Facebook foi um instante até a página ganhar 44 mil seguidores, multiplicando-se as campanhas de dádiva de sangue e de angariação de dadores.
Maria foi transplantada logo em maio de 2017, no IPO de Lisboa. Não é permitido por lei conhecer o dador, mas sabe-se que a sua campanha foi a terceira a angariar mais dadores no País. A página entretanto continua ativa. “É importante continuar a divulgar a necessidade de dadores de medula óssea e tentar que as pessoas que nos seguem sejam ‘embaixadoras’, organizando elas próprias sessões de esclarecimento e colheitas”, justifica Rita.
Um ano e meio depois, Maria largou os antibacterianos e os antivírus, e, se tudo continuar a correr bem, em breve poderá espaçar as idas ao IPO e regressar à creche. Em março deste ano, Rita e Miguel criaram com um grupo de amigos a associação ADN Solidário, cujo foco é a educação para a generosidade, nomeadamente através de ações em escolas. “A rede social é o mais aproximado possível de uma comunidade de antigamente”, diz Rita. “É virtual, mas permite fazer ações reais com bons impactos.”
O efeito da era digital no heroísmo também é real, percebe-se ao conhecer a história destes pais. Dificilmente Rita e Miguel aceitariam ser chamados de “ciber-heróis”, mas era esse o nome que lhes daria a psicóloga Dana Klisanin e com razão: não usam eles ativamente a internet para ajudarem outras pessoas?
O mesmo poderíamos dizer da tradutora Carla Lopes e da socióloga Camila Rodrigues que, sem se conhecerem, criaram o grupo de Facebook Mulheres à Obra (MAO) em março do ano passado, a partir de uma discussão num outro grupo sobre a dificuldade em conciliar as vidas familiar e profissional. Envolvendo atualmente mais de 80 mil mulheres, o MAO tornou-se uma plataforma que dá nome a um podcast, uma revista digital e uma academia de formação. “O Facebook permitiu o nascimento e crescimento a custo de zero de um movimento de entreajuda”, dizem as suas fundadoras.
Joel Silva já conhecia a potencialidade agregadora das redes sociais quando criou o grupo ReConstruir Pinhal Interior Norte – trabalha em marketing; utiliza-as com frequência para fazer divulgação. “Tenho muitos amigos no Facebook e percebi que seria fácil movimentar esta gente toda. Cresci em Vila Cã, uma aldeia do concelho de Pombal, onde as pessoas se ajudavam – era assim que reagiam”, conta. “Agora, podemos fazer isso em larga escala, recorrendo à internet.”
Hoje, este gestor de projetos usa mais a sua própria página pessoal para ir dando conta do que se está a passar no terreno, mas foi aquele grupo de Facebook que tornou possível avançar com a reconstrução de duas casas destruídas pelos incêndios do ano passado. A da aldeia de Figueira está a ser feita sem qualquer dinheiro envolvido, a de Castanheira de Pera avança através de uma espécie de crowdfunding: um grupo paga a eletricidade, outro a cozinha e por aí fora. Para gerir doações e tratar da parte burocrática, o grupo tem uma grande ajuda do Rotary Club de Pombal. E, embora as casas estejam na reta final, a mão de obra continua a ser bem-vinda, vai dizendo Joel Silva.
Quem não tem a hipótese de ir para o terreno pode dar largas ao seu altruísmo digitalmente, já se escreveu. São, aliás, cada vez mais as pessoas a criarem angariações de fundos no Facebook quando fazem anos. Se aceita um conselho, caro leitor, a próxima vez que tropeçar numa iniciativa destas não torça logo o nariz.